(…) eu sabia que a
ordem estabelecida podia desaparecer da noite para o dia. Mudanças podem ser
rápidas como um relâmpago. Não podemos confiar na impressão de que “Não vai
acontecer aqui”: qualquer coisa pode acontecer em qualquer lugar, dadas as
circunstâncias. E é assim que as coisas acontecem
em “O Conto da Aia”. — Margaret Atwood em ensaio para o jornal “The New York Times”
Margaret Atwood, em The
Handmaid’s Tale, traduzido no Brasil como O Conto da Aia, é um romance distópico de
1985, ambientado em um país fictício denominado República de Gilead, antigo
Estados Unidos da América.
Após guerras e diversas crises sociais, incluindo níveis criticamente baixos de natalidade, um grupo de fundamentalistas cristãs tomou o poder e instaura novas leis e regras sociais. Os Estados Unidos agora, representam nada mais do que um passado a ser renegado pelas autoridades da nova realidade americana.
Após guerras e diversas crises sociais, incluindo níveis criticamente baixos de natalidade, um grupo de fundamentalistas cristãs tomou o poder e instaura novas leis e regras sociais. Os Estados Unidos agora, representam nada mais do que um passado a ser renegado pelas autoridades da nova realidade americana.
A desigualdade
social é clara diante da divisão social estabelecida pela nova República, onde
homens e mulheres são divididos em castas com funções e privilégios
específicos. Atwood explora os temas da
subjugação das mulheres e os vários meios pelos quais elas perdem o
individualismo, a independência, o acesso à informação, a liberdade física e
intelectual, entre outros, em um cenário hostil, onde os direitos humanos são
severamente limitados.
A ligação entre
o Estado e a Igreja fornece legitimidade a cada uma das ações do governo já que
elas estão sob a permissão de Deus. Logo, todos devem obedecer ao Estado, pois
assim estarão em comunhão com o desejo divino. Assim, neste contexto, as mulheres, ao serem proclamadas Aias,
sabem qual é seu papel social e político, visto que a Constituição a ser
seguida é o Velho Testamento.
O problema da infertilidade gerado pela degradação ambiental chegou a tal
ponto que a maioria das mulheres e dos homens não conseguia gerar bebês, porém,
a organização social em torno das
questões da fertilidade baseia-se na ideia de que é biologicamente natural que
as mulheres procriem e que os homens fecundem. Caso não ocorra a gravidez, as
mulheres são consideradas estéreis, mas nunca os homens. Assim, em momento
algum o homem é o responsável pela baixa de natalidade em Gilead, como diz Offred:
“Um homem estéril não existe, não
oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundas e mulheres que são
estéreis, essa é a lei”. — O Conto da Aia
Estabelece-se uma estrutura social determinada de acordo com a função das
pessoas na sociedade, de forma que os homens da elite, chamados de Comandantes,
são convocados a fazer as leis civis segundo a moral bíblica, tanto que a
República de Gilead, onde a história do livro ocorre, é mencionada várias vezes
na Bíblia no livro do Génesis.
As minorias são fadadas a viver sem liberdade de escolha, sendo
extremamente repreendidas fisicamente e psicologicamente por qualquer ação que
conduzisse ao individualismo. A liberdade de expressão é totalmente reprimida por meio da
política do silêncio, abafando as vozes sociais e só deixar presente o discurso
das instituições de poder.
Observa-se que o poder da palavra é tão desejado quanto ameaçador, seja
para as vítimas do sistema, seja para as autoridades do país. No entanto, ao proibir
o acesso aos livros, às revistas, à escrita e à leitura de qualquer natureza, a
liberdade de expressão passa a ser um bem ainda mais valioso do que era na
sociedade democrática.
Assim, para que o novo sistema imposto por Gilead não encontre
resistência, eles substituem as identidades existentes no antigo regime
democrático por outras que sejam coniventes com a ideologia do novo sistema, de
forma que até mesmo as vestimentas da população são escolhidas de acordo com o
exercício do indivíduo na esfera coletiva. Por exemplo, as Aias vestem túnicas
vermelhas; a classe denominada Esposas usa vestidos azuis; as Marthas, verdes,
e assim por diante.
Em Gilead, não é permitido mudar de classe ou de função, portanto ao fazer
parte desse novo sistema, o indivíduo precisa reinventar um posicionamento e
uma identidade afinados às ideologias desse regime caracterizado por uma
disciplina rigorosa e pela destruição dos Direitos Humanos.
No cotidiano de
Gilead, o poder é claramente visto sob a forma de vigilância da polícia do
governo — Os Olhos, nome que remete
ao perfeito sistema de vigilância, no qual deve existir um olhar permanente que
assiste a todos integralmente, mas que não é permitido ao indivíduo assistido
saber quando, onde ou por qual meio é vigiado.
Deste modo, o
sistema de vigilância funciona como uma engrenagem do dispositivo disciplinar,
pois estabelece uma rede de relações em que as classes altas vigiam as mais
baixas e vice-versa, apoiando-se uns nos outros, de modo a formar fiscais
perpetuamente fiscalizados.
Considerado um
romance distópico, O Conto da Aia tornou-se um símbolo da literatura feminista,
mesmo não sendo essa a intenção de Atwood. Tal fato, porém, é explicável tendo
em vista que, escrita em meio à segunda onda do feminismo, a obra levanta
questões relacionadas à luta feminista da época e, porque não dizer, da
atualidade também.
Em verdade, o
romance é uma distopia de sucesso que ganhou novas edições desde sua publicação
inicial. Adaptado para o cinema em 1990;
feito uma ópera em 2000; interpretado pela Royal Winnipeg Ballet em 2013 e, desde
2016, sua popularidade ganhou ainda mais prestígio com a adaptação, dessa vez
como série, produzida pelo serviço de streaming Hulu, também intitulada The Handmaid’s
Tale. A primeira temporada estreada em abril de 2017, surgiu em um
momento em que as discussões acerca do conservadorismo, gênero, autoritarismo e
tensões na relação entre política e religião estavam em voga, principalmente, entre
o público em geral.
Mas, qual será o
motivo dessa projeção massiva de um livro publicado há mais de 30 anos?
O Conto da Aia esteve durante 23 semanas
na lista dos mais vendidos do The New York Times. Foi traduzido em
torno de quarenta idiomas e sua adaptação para série de TV já tem a 3ª
temporada programada para junho de 2019, além de ser a primeira série original
de um serviço de streaming a ganhar o Emmy de Melhor Série Dramática do Emmy
2017. No Brasil? Bem, a primeira
temporada já está disponível no serviço de streaming Globoplay.
Por outro lado, a
obra voltou a ganhar notoriedade quando Donald Trump foi eleito presidente de
os EUA em 2016, trazendo à tona ansiedades e inquietações no seio da sociedade
americana, fazendo com que inúmeras referências fossem feitas ao livro de
Atwood por ela trazer à ficção temas que ainda
são relevantes no século 21, como a opressão feminina e o fundamentalismo
cristão na política.
Atwood nega que seu livro é profético:“Criei
uma regra para mim mesma”, escreveu ela, “não inventaria nada que os seres
humanos já não tivessem feito em algum tempo ou lugar”.
Em suas entrevistas, a autora deixa claro que muitas das atrocidades
apresentadas na trama foram inspiradas em fatos ocorridos em algum momento da
História. Assim, a desconfiança e o medo de estarem sendo vigiados foram
características tiradas da experiência de Atwood nos países atrás da Cortina de
Ferro no império Soviético; o apagamento do indivíduo fazia parte da estratégia
nazista na subjugação dos judeus; o sequestro de crianças pelo Estado para
serem entregues a outras famílias ocorreu na Argentina nos anos 70; o grupo
secreto de resistência na obra — Mayday, foi inspirado em movimentos de
resistência da Segunda Guerra Mundial; e
muitas outras referências como os códigos restritos de vestimentas que fazem
parte de diversas sociedades teocráticas, como a burca no Afeganistão.
Atwood baseou-se
em notícias para construir o universo e o enredo de O Conto da Aia narrado
pela Aia
Offred, que como protagonista do romance e narradora da sua própria
história, cujo nome verdadeiro não é revelado, faz parte de uma classe de
mulheres mantidas para fins reprodutivos e denominadas "Aias", em uma
era de nascimentos em declínio, devido à
esterilidade por poluição e doenças sexualmente transmissíveis.
As mulheres
perdem seus nomes reais e passam a ser denominadas de acordo com o Comandante
para quem trabalham. Neste caso, "Offred" se origina de "of
Fred" — em livre tradução para
português, "do Fred" —, por servir a um comandante do alto escalão do
governo chamado Fred. Deste modo, ao longo da vida, uma Aia pode ter vários
donos e, portanto, vários nomes: Offred, Ofglen, Ofcharles, Ofwayne.
“Meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém
usa porque é proibido. Digo a mim mesma que isso não tem importância, seu nome
é como o número de telefone, útil apenas para os outros; mas o que digo a mim
mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o conhecimento desse nome como
algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e buscar, algum dia.” — O Conto da Aia
Offred narra a estrutura da sociedade de Gilead, o processo de
transição da democracia para o totalitarismo, incluindo as diferentes classes
de mulheres e suas vidas circunscritas na nova teocracia cristã. Ela descreve ainda sua vida como Aia,
intercalados em flashbacks de partes de sua vida de antes e durante o
início do golpe, quando ela descobre que perdeu toda autonomia, depois de uma
tentativa fracassada de escapar do país com sua filha e marido para
o Canadá.
Na nova República, as mulheres férteis e não casadas, iriam servir como Aias,
tendo o papel de procriar a maior quantidade possível de vezes em suas vidas.
Assim, as Aias iriam para a casa de um membro da elite, chamado de Comandante,
e engravidariam dele. Ao nascer a criança seria dada à esposa do Comandante e a
Aia iria para a casa de outra família. Caso não reproduzisse em um período de
dois anos, era condenada a realizar trabalho forçado nas Colônias, ambiente
totalmente tóxico e dominado por extremo nível de radiação.
Desta forma, as
Aias são descaracterizadas como mulheres, para que sejam apenas um receptáculo
humano, cuja função é gerar crianças saudáveis para a sociedade, através de uma
cerimônia realizada no seu dia fértil, passando a ser então objeto de posse de
um dos Comandantes, detentores de poder em Gilead. Tal ritual é inspirado por
uma passagem bíblica, cujos versículos servem de epígrafe do romance.
Para as Aias o
potencial de gerar uma vida é o que as define e as aprisiona, ao mesmo tempo,
já que sua sobrevivência está ligada, principalmente, às suas funções
reprodutivas.
Apesar de não
terem a pior qualidade de vida, as Aias são as que mais sofrem repressões na
República de Gilead, tanto que apesar de lhes ser permitido sair em duplas para
fazer compras, contudo são proibidas de conversarem, tendo apenas o direito de
se cumprimentarem de acordo com as normas de comportamentos prescritas para
elas, as quais se vigiam, mutuamente. A protagonista deixa muito explícito
através de seu relato que elas são treinadas a condenar, julgar e odiar umas às
outras:
“Não temos permissão para ir lá exceto em pares.
Supostamente, isso é para nossa proteção, embora a ideia seja absurda: já somos
bem protegidas. A verdade é que ela é minha espiã, como eu sou a dela.” — O Conto da Aia
Percebe-se que
não só as mulheres sofrem restrição sexual, mas os homens também, pois de
acordo com a classe eles têm permissão ou não para se casar. Também usam
uniformes e precisam construir novas identidades dentro do sistema.
Nota-se que ao
se despirem dos uniformes representativos das ideologias de Gilead, os corpos
das personagens são expostos simplesmente como seres humanos comuns, dotados ou
não de poder social. As vestes dos Comandantes são de cor preta, dando a Offred
a impressão de impenetrabilidade, sugestivas de misteriosas intenções.
Porém, sem o
autoritarismo que o uniforme impõe, Offred reconhece que o Comandante apresenta
um corpo que denuncia o desgaste do tempo... destituído de poder, enfatizando a
força que os trajes representam na obra.
[...] Chegou à
camisa, então, debaixo dela, tristemente, uma barriguinha. Fiapos de cabelo
[...] sem seu uniforme ele parece menor, mais velho, como algo ficando seco.— O Conto da Aia
A história
começa quando Offred passa a ser aia
na residência de Fred, o Comandante, que é um alto funcionário da República de
Gilead que só deve ter contato com Offred durante o "ritual"
destinado à reprodução e no qual a esposa do Comandante, Serena Joy, está presente.
Entretanto,
mesmo sabendo das regras, Fred mantém um relacionamento ilegal e ambíguo com
Offred e, em troca, oferece-lhe produtos
escondidos ou contrabandeados, como revistas de moda antigas, cosméticos e
roupas; leva-a ao bordel secreto administrado pelo governo e encontra-se
furtivamente com ela em seu escritório, onde ele permite que ela leia, uma
atividade proibida para as mulheres.
Observa-se que Serena
Joy, esposa do comandante Fred, apesar de sentir repugnância, humilhação e vergonha pela
situação tão desconfortante para ela quanto para Offred, as motivações desse ato
sexual são distintas, já que para Offred, a Cerimônia é um ato de violência
sexual e desrespeito com seu corpo, para Serena representa o sentimento de
despeito por ela precisar de Offred para atingir seu objetivo: ter um filho.
É possível
identificar que, neste jogo de poderes, ironicamente, o Comandante, também, é
incapaz de engravidar a Aia. Existe, assim, a máscara convencionada, aceita
pela Esposa e pelo Comandante. Se por um lado Serena não gosta de Offred, por
outro, esta representa a única chance de dar um filho ao Comandante, estabelecendo-se
assim uma relação de cumplicidade quando Serena pede a Offred e a Nick
(motorista da família) que mantenham relações para que a protagonista possa
engravidare, e, em troca, Offred recebe notícias de sua filha, a
quem Offred não vê desde que ela fora
capturada.
Serena, aparentemente, sabe de que o Comandante quebra as
regras em relação a receber itens de contrabando, mas, o que ela não tolera é o
marido se tornar muito familiarizado com suas aias. Nota-se que quando Serena
descobriu que a antecessora de Offred visitava o marido escondida, fica
implícito que a aia cometeu suicídio em parte por medo do que Serena faria.
Um aspecto
interessante relacionado à submissão e subversão de Offred é observado
após o encontro inicial dela com Nick, os dois se envolvem, e apesar de seu estado de
cautela durante a maior parte da obra, Offred arrisca tudo para manter um
relacionamento com Nick, já que ela encontra nessa relação a liberdade
de substituir as fantasias afetivas reprimidas pelo sistema por outras que
fazem realçar os seus reais desejos, que o que de certa forma
mostra que Atwood se manteve presa à meta tradicional e patriarcal de um
romance, opondo-se desta forma à fama feminista atribuída ao livro.
Além de Nick,
três personagens se destacam por sua subversão ao sistema; a mãe de Offred;
Ofglen, sua parceira de caminhadas; e Moira, sua melhor amiga. Tanto Offred
quanto as outras personagens possuem linguagem própria independente da voz
autoral de Atwood, o que pode ser comprovado a partir da relação entre Offred,
sua mãe, Moira e Ofglen.
Acerca da
vigilância constante, Offred reflete sobre uma das funções de Ofglen: “A verdade é que ela é minha espiã, como eu
sou a dela. Se alguma de nós escapulir da rede por causa de alguma coisa que
aconteça em uma de nossas caminhadas diárias, a outra será responsável”.
Ofglen pode ser um Olho
para testar a protagonista, assim como Nick poderia ser um, ou qualquer outra
pessoa. Assim, mesmo que Offred não
veja o vigilante ou em quais momentos está sendo vigiada, ela procura seguir as
normas.
A mãe de Offred,
feminista no período pré-Gileadiano, é descrita na obra como uma ativista
feminista, que durante toda a vida lutou pelos seus ideais e por não aceitar as exigências do regime, é
enviada às Colônias, o que mostra o seu caráter subversivo.
Observa-se que Ofglen
, apesar de fazer parte do movimento Mayday, identifica-se e compactua com a
ideologia do sistema e respeita os valores que foram impostos, às quais procura
agir corretamente de acordo com as normas porque acredita que sempre há alguém
que pode delatá-la caso cometa alguma infração. Ofglen convida Offred a
participar do grupo de resistência Mayday, cujo objetivo é um salvamento
coletivo, mas, no final da obra, comete suicídio para evitar ser capturada
pelos Olhos, o serviço secreto de Gilead.
Por sua vez, Moira,
entre as três, é a que possui mais destaque na narrativa. Moira serve como
inspiração para Offred que admira sua bravura e resistência em não se deixar
influenciar pelas ideologias do regime. Ela representa o elo entre Offred e a
vida anterior ao totalitarismo, o que faz com que a protagonista sinta-se
segura ao seu lado. Moira utiliza uma linguagem que contém forte ironia
carregada de tom humorístico, sendo sua irreverência um dos seus traços
marcantes que é usado pela autora como recurso para quebrar a tensão e a
seriedade da narrativa. Entretanto, Moira foge do Centro e vai viver na Casa de
Jezebel — prostíbulo criado e frequentado ilegalmente pelos Comandantes, considerando
esta uma opção melhor do que permanecer como aia ou ir para as Colônias.
Nota-se que, enquanto
Moira, Ofglen e a mãe da aia possuem personalidades e comportamentos fortemente
marcados pela luta dos direitos das mulheres, pelo discurso feminista e pelos
movimentos de resistência e lutam contra o sistema diretamente, Offred escolhe
enfrentar o regime através de sua narrativa.
No caso de Offred, o silenciamento imposto a ela pelo sistema é utilizado
também como instrumento de sobrevivência, através de sua narrativa secreta:
“Gostaria de acreditar que isso é
uma história que estou contando. Preciso acreditar nisso. Tenho que acreditar
nisso. Aquelas que conseguem acreditar que essas histórias são apenas histórias
têm melhores chances”. — O Conto da
Aia
Assim, quando Offred narra sua história, ela desnuda o sistema de poder
de Gilead, mas também assume poder porque é ela quem comanda a narrativa, ou
seja, ela seleciona os fatos, constrói uma imagem dos outros e de si mesma. A
partir da recordação de inúmeras vozes, imagens e lembranças da vida antes do
golpe, Offred consegue se reconhecer e guardar as memórias como instrumento
para evitar a submissão ao sistema, pois, enquanto conseguir se identificar, não terá se transformado completamente em
Offred, ou seja, não irá “pertencer a Fred”, como ela diz:
“Meu nome não é Offred, tenho outro
nome que ninguém usa porque é proibido. Digo a mim mesma que isso não tem
importância, seu nome é como o número de telefone, útil apenas para os outros;
mas o que digo a mim mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o
conhecimento desse nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para
escavar e buscar, algum dia”. — O
Conto da Aia
Percebe-se que,
em diversos momentos, a narradora declara sua vontade de obter poder, muitas
vezes projetando esse desejo em coisas materiais, como, por exemplo, roubar uma
caixinha de remédios da sala de estar da casa e escondê-lo, para assim ter uma
coisa só sua, um segredo, um poder. Ela revela:
“De vez em quando eu a tiraria e olharia para
ela. Isso me faria sentir que tenho poder.” Roubar para possuir algo reflete a necessidade
de transgredir as leis, de ultrapassar os limites de sua condição, ser ativa ao
invés de se submeter à passividade que sua função social lhe impõe.
Desta forma, pode-se dizer que Offred
não é uma heroína que vai lutar contra o sistema imposto a ela, mas sim uma
luta interna de manter viva sua história de vida, já que seus pensamentos são
as únicas coisas não usurpadas pelo governo.
Na verdade, o que aparentemente parece passividade da protagonista ao não
se rebelar publicamente contra as autoridades, torna-se uma estratégia, já que
Offred observa as mudanças sociais, não as
reconhecendo como pertencentes ao seu mundo e, aos poucos, de forma encoberta,
sem o conhecimento dos pilares do poder de Gilead, luta e protesta contra a
opressão usando a palavra através de um gravador no qual narra sua trajetória e
a de seu país.
O foco narrativo centrado em Offred é uma forma de alertar que em uma
sociedade todos estão passíveis de sofrerem a retirada da liberdade de qualquer
natureza, porém, assim como é vital manter a esperança de dias melhores, também
é indispensável manter os olhos e ouvidos atentos, pois como diz uma das
sentenças mais emblemáticas do romance: “Nolite
te bastardes carborundorum”, cujo significado é “Não permita que os bastardos
reduzam você a cinzas”. — O Conto da Aia
Atwood sustenta que a República
de Gilead é apenas uma extrapolação das tendências observadas nos
Estados Unidos no momento em que escreveu a obra. Ao imaginar um país comandado
por cristãos radicais, aborda as
possibilidades de dominação que povos podem sofrer, independente de credos,
raças ou culturas, mostrando que tudo o que é relatado já aconteceu, acontece
ou ainda vai acontecer em algum lugar do mundo.
"É difícil não
associar as preocupações sociais que o livro lança ainda nos anos 1980 ao
cenário político mundial atual", diz a escritora.
Todo esse
contexto pode levar o leitor a se deparar com um futuro desastroso, em que
salvação parece impossível. Porém, Atwood, ao comentar a obra, alerta:
“E o meu livro não é totalmente sombrio e nem
pessimista, por várias razões. O personagem central — a Aia Offred — escapa. A
possibilidade da fuga existe. A sociedade existente no futuro que não é a
sociedade de Gilead e é capaz de refletir sobre a sociedade de Gilead da mesma
forma que nós refletimos sobre o século XVII”.
Em verdade, Atwood
através da protagonista Offred, alerta a passividade da sociedade enquanto tudo
acontecia, já que muitos acreditavam que tudo o que estava acontecendo era
realmente o melhor. É aí que a autora chama a atenção do leitor para o perigo
de não enxergar o que está acontecendo ao seu redor, conduzindo-o a refletir de
que forma está contribuindo para que a reconstituição feita por Offred se torne
uma possível reconstrução da própria história.
“Eu não coloquei nada que ainda tenhamos feito,
estejamos fazendo, estamos tentando seriamente fazer, juntamente com as
tendências que já estão em andamento … Então, todas essas coisas são reais e,
portanto, a quantidade de invenção pura é quase nula”— Margaret Atwood em uma
entrevista para um fórum sobre gênero em 2004.
A obra leva o leitor a refletir sobre aspectos sociais,
econômicos, políticos e ecológicos na sociedade contemporânea. É uma daquelas
leituras que deixa o leitor ansioso pelo fim da trama, mas que nem sempre apresenta
o final esperado. Assim, quando Offred
entra na “van preta – Os Olhos” para um destino desconhecido, o leitor se pega
revirando as últimas páginas para trás e para frente em busca de uma pista que
possa indicar o futuro de Offred — Morte, Prisão ou Liberdade?
"Está
tudo bem. É o Mayday. Vá com eles.” — diz Nick.
“Se esse é o meu fim ou um novo começo, não tenho como saber:
entreguei-me às mãos de estranhos, porque não pode ser ajudado. E então eu
passo para dentro da escuridão; ou então a luz.” — diz Offred
O livro encerra
com um capítulo do livro ou posfácio, intitulado por Atwood de “Notas
Históricas”, onde a autora revela as informações que levaram a essa
distopia com um final intrigante, já que termina sem indicar exatamente o
destino da protagonista.
O epílogo é
"uma transcrição parcial dos trabalhos do Décimo Segundo Simpósio de
Estudos Gileadeanos", escrito no ano de 2195. De acordo com o
"palestrante" do simpósio, o professor Pieixoto, ele e seu colega, o
professor Knotly Wade, descobriram a história de Offred gravada em fitas
cassete e transcreveram as fitas, chamando-as coletivamente de "O Conto da
Serva".
Pieixoto
descreve como Offred se tornou uma serva, fala sobre os vários fatores que
levam à infertilidade, de doenças à poluição e, mais tarde, menciona que um
vírus de esterilidade foi criado especialmente como arma. Ele também relata a
dificuldade de encontrar algo mais sobre Offred, Luke , Nick , Moira ou Janine,
já que esses podem ter sido nomes falsos. Ele suspeita que Offred possa ter
feito as fitas dentro de Gilead para ajudar Mayday.
No entanto, o epílogo implica que,
após o colapso da república teocrática de Gilead, uma sociedade mais
igualitária, embora não os Estados Unidos que existiam anteriormente, reaparece
com a restauração dos direitos plenos das mulheres e da liberdade de religião.
Mas, o que aconteceu com Offred? Esta é a pergunta que
o professor Pieixoto se faz. Talvez ela tenha chegado ao Canadá e depois à
Inglaterra, o que era mais seguro; talvez
ela tenha sido capturada; talvez ela tenha se isolado da sociedade. Ou, quem
sabe, depois da morte de Ofglen, Nick poderia ter matado Offred para se
proteger, mas, então por que ele permitiu que ela fugisse com “Os Olhos Rebeldes”?
O final do discurso de Pieixoto pode ser a passagem
mais importante do livro sobre o amor, já que de um ponto de vista histórico,
podemos entender o quão inesperada e irracional foi a ação de Nick. Apesar de
toda a sua falta de emoção, teria ele salvo
Offred por causa do amor?
Apesar de ter-se avançado 200 anos, descobre-se uma
sociedade muito parecida com a sociedade pré-Gileadeana, o que sugere um modelo
cíclico ao invés de linear da história. E o fato de a sociedade voltar à forma
que possibilitou a instituição de Gilead, serve como uma forma de reforçar o
alerta que transcorre em toda a obra.
Pode-se dizer que, o epílogo Notas Históricas Sobre O Conto da Aia é um convite ao leitor a
fazer uma releitura crítica da obra, analisando não apenas a história feita por
um historiador acadêmico, mas também sua própria posição como leitor,
reconsiderando, se for o caso, as
implicações de suas interpretações.
Finalizando, se você é um dos milhões de fãs que de
fato espera ansioso pela continuação de O
Conto de Aia, saiba que Atwood retoma a história, 15 anos depois da cena
final de Offred, e escreve The
Testaments (Os Testamentos ou As Provas, em tradução livre), cuja história será
narrada por três personagens femininas de Gilead. O lançamento está previsto
para meados de setembro de 2019.
“Caros
leitores: Tudo o que você me perguntou sobre a Gilead e seu funcionamento
interno é a inspiração para este livro. Bem, quase tudo! A outra inspiração é o
mundo em que vivemos”, afirma Margaret
Atwood.
Título: O Conto
da Aia
Título original: The
Handmaid's Tale
Autora: Margaret
Atwood
Tradução: Ana Deiró
Editora: Rocco
Ano: 2017
Preço: A partir
de R$: 44,50 (E-book: R$: 28,90)
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