O Conto da Aia, de Margaret Atwood

(…) eu sabia que a ordem estabelecida podia desaparecer da noite para o dia. Mudanças podem ser rápidas como um relâmpago. Não podemos confiar na impressão de que “Não vai acontecer aqui”: qualquer coisa pode acontecer em qualquer lugar, dadas as circunstâncias. E é assim que as coisas acontecem em “O Conto da Aia”. — Margaret Atwood em ensaio para o jornal “The New York Times”

Margaret Atwood, em The Handmaid’s Tale, traduzido no Brasil como O Conto da Aia, é um romance distópico de 1985, ambientado em um país fictício denominado República de Gilead, antigo Estados Unidos da América.

Após guerras e diversas crises sociais, incluindo níveis criticamente baixos de natalidade, um grupo de fundamentalistas cristãs tomou o poder e instaura novas leis e regras sociais. Os Estados Unidos agora, representam nada mais do que um passado a ser renegado pelas autoridades da nova realidade americana. 

A desigualdade social é clara diante da divisão social estabelecida pela nova República, onde homens e mulheres são divididos em castas com funções e privilégios específicos.  Atwood explora os temas da subjugação das mulheres e os vários meios pelos quais elas perdem o individualismo, a independência, o acesso à informação, a liberdade física e intelectual, entre outros, em um cenário hostil, onde os direitos humanos são severamente limitados. 

A ligação entre o Estado e a Igreja fornece legitimidade a cada uma das ações do governo já que elas estão sob a permissão de Deus. Logo, todos devem obedecer ao Estado, pois assim estarão em comunhão com o desejo divino. Assim, neste contexto,  as mulheres, ao serem proclamadas Aias, sabem qual é seu papel social e político, visto que a Constituição a ser seguida é o Velho Testamento.

O problema da infertilidade gerado pela degradação ambiental chegou a tal ponto que a maioria das mulheres e dos homens não conseguia gerar bebês, porém, a  organização social em torno das questões da fertilidade baseia-se na ideia de que é biologicamente natural que as mulheres procriem e que os homens fecundem. Caso não ocorra a gravidez, as mulheres são consideradas estéreis, mas nunca os homens. Assim, em momento algum o homem é o responsável pela baixa de natalidade em Gilead, como diz  Offred:
“Um homem estéril não existe, não oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundas e mulheres que são estéreis, essa é a lei”.— O Conto da Aia

Estabelece-se uma estrutura social determinada de acordo com a função das pessoas na sociedade, de forma que os homens da elite, chamados de Comandantes, são convocados a fazer as leis civis segundo a moral bíblica, tanto que a República de Gilead, onde a história do livro ocorre, é mencionada várias vezes na Bíblia no livro do Génesis.

As minorias são fadadas a viver sem liberdade de escolha, sendo extremamente repreendidas fisicamente e psicologicamente por qualquer ação que conduzisse  ao individualismo.  A liberdade de expressão é totalmente reprimida por meio da política do silêncio, abafando as vozes sociais e só deixar presente o discurso das instituições de poder.

Observa-se que o poder da palavra é tão desejado quanto ameaçador, seja para as vítimas do sistema, seja para as autoridades do país. No entanto, ao proibir o acesso aos livros, às revistas, à escrita e à leitura de qualquer natureza, a liberdade de expressão passa a ser um bem ainda mais valioso do que era na sociedade democrática.

Assim, para que o novo sistema imposto por Gilead não encontre resistência, eles substituem as identidades existentes no antigo regime democrático por outras que sejam coniventes com a ideologia do novo sistema, de forma que até mesmo as vestimentas da população são escolhidas de acordo com o exercício do indivíduo na esfera coletiva. Por exemplo, as Aias vestem túnicas vermelhas; a classe denominada Esposas usa vestidos azuis; as Marthas, verdes, e assim por diante.

Em Gilead, não é permitido mudar de classe ou de função, portanto ao fazer parte desse novo sistema, o indivíduo precisa reinventar um posicionamento e uma identidade afinados às ideologias desse regime caracterizado por uma disciplina rigorosa e pela destruição dos Direitos Humanos.

No cotidiano de Gilead, o poder é claramente visto sob a forma de vigilância da polícia do governo — Os Olhos, nome que remete ao perfeito sistema de vigilância, no qual deve existir um olhar permanente que assiste a todos integralmente, mas que não é permitido ao indivíduo assistido saber quando, onde ou por qual meio é vigiado.

Deste modo, o sistema de vigilância funciona como uma engrenagem do dispositivo disciplinar, pois estabelece uma rede de relações em que as classes altas vigiam as mais baixas e vice-versa, apoiando-se uns nos outros, de modo a formar fiscais perpetuamente fiscalizados.

Considerado um romance distópico, O Conto da Aia tornou-se um símbolo da literatura feminista, mesmo não sendo essa a intenção de Atwood. Tal fato, porém, é explicável tendo em vista que, escrita em meio à segunda onda do feminismo, a obra levanta questões relacionadas à luta feminista da época e, porque não dizer, da atualidade também.

Em verdade, o romance é uma distopia de sucesso que ganhou novas edições desde sua publicação inicial.  Adaptado para o cinema em 1990; feito uma ópera em 2000; interpretado pela Royal Winnipeg Ballet em 2013 e, desde 2016, sua popularidade ganhou ainda mais prestígio com a adaptação, dessa vez como série, produzida pelo serviço de streaming Hulu, também intitulada The Handmaid’s Tale. A primeira temporada estreada em abril de 2017, surgiu em um momento em que as discussões acerca do conservadorismo, gênero, autoritarismo e tensões na relação entre política e religião estavam em voga, principalmente, entre o público em geral.

Mas, qual será o motivo dessa projeção massiva de um livro publicado há mais de 30 anos?
O Conto da Aia esteve durante 23 semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times. Foi traduzido em torno de quarenta idiomas e sua adaptação para série de TV já tem a 3ª temporada programada para junho de 2019, além de ser a primeira série original de um serviço de streaming a ganhar o Emmy de Melhor Série Dramática do Emmy 2017. No Brasil?  Bem, a primeira temporada já está disponível no serviço de streaming Globoplay.

Por outro lado, a obra voltou a ganhar notoriedade quando Donald Trump foi eleito presidente de os EUA em 2016, trazendo à tona ansiedades e inquietações no seio da sociedade americana, fazendo com que inúmeras referências fossem feitas ao livro de Atwood por ela trazer à ficção temas que ainda são relevantes no século 21, como a opressão feminina e o fundamentalismo cristão na política.

Atwood nega que seu livro é profético:“Criei uma regra para mim mesma”, escreveu ela, “não inventaria nada que os seres humanos já não tivessem feito em algum tempo ou lugar”.

Em suas entrevistas, a autora deixa claro que muitas das atrocidades apresentadas na trama foram inspiradas em fatos ocorridos em algum momento da História. Assim, a desconfiança e o medo de estarem sendo vigiados foram características tiradas da experiência de Atwood nos países atrás da Cortina de Ferro no império Soviético; o apagamento do indivíduo fazia parte da estratégia nazista na subjugação dos judeus; o sequestro de crianças pelo Estado para serem entregues a outras famílias ocorreu na Argentina nos anos 70; o grupo secreto de resistência na obra — Mayday, foi inspirado em movimentos de resistência da Segunda Guerra Mundial;  e muitas outras referências como os códigos restritos de vestimentas que fazem parte de diversas sociedades teocráticas, como a burca no Afeganistão.

Atwood baseou-se em notícias para construir o universo e o enredo de O Conto da Aia narrado pela Aia Offred, que como protagonista do romance e narradora da sua própria história, cujo nome verdadeiro não é revelado, faz parte de uma classe de mulheres mantidas para fins reprodutivos e denominadas "Aias", em uma era de nascimentos em declínio,  devido à esterilidade por poluição e doenças sexualmente transmissíveis.

As mulheres perdem seus nomes reais e passam a ser denominadas de acordo com o Comandante para quem trabalham. Neste caso, "Offred" se origina de "of Fred" —  em livre tradução para português, "do Fred" —, por servir a um comandante do alto escalão do governo chamado Fred. Deste modo, ao longo da vida, uma Aia pode ter vários donos e, portanto, vários nomes: Offred, Ofglen, Ofcharles, Ofwayne.

“Meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém usa porque é proibido. Digo a mim mesma que isso não tem importância, seu nome é como o número de telefone, útil apenas para os outros; mas o que digo a mim mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o conhecimento desse nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e buscar, algum dia.” — O Conto da Aia


Offred narra a estrutura da sociedade de Gilead, o processo de transição da democracia para o totalitarismo, incluindo as diferentes classes de mulheres e suas vidas circunscritas na nova teocracia cristã. Ela descreve ainda sua vida como Aia, intercalados em flashbacks de partes de sua vida de antes e durante o início do golpe, quando ela descobre que perdeu toda autonomia, depois de uma tentativa fracassada de escapar do país com sua filha e marido para o Canadá.

Na nova República, as mulheres férteis e não casadas, iriam servir como Aias, tendo o papel de procriar a maior quantidade possível de vezes em suas vidas. Assim, as Aias iriam para a casa de um membro da elite, chamado de Comandante, e engravidariam dele. Ao nascer a criança seria dada à esposa do Comandante e a Aia iria para a casa de outra família. Caso não reproduzisse em um período de dois anos, era condenada a realizar trabalho forçado nas Colônias, ambiente totalmente tóxico e dominado por extremo nível de radiação.

Desta forma, as Aias são descaracterizadas como mulheres, para que sejam apenas um receptáculo humano, cuja função é gerar crianças saudáveis para a sociedade, através de uma cerimônia realizada no seu dia fértil, passando a ser então objeto de posse de um dos Comandantes, detentores de poder em Gilead. Tal ritual é inspirado por uma passagem bíblica, cujos versículos servem de epígrafe do romance.

Para as Aias o potencial de gerar uma vida é o que as define e as aprisiona, ao mesmo tempo, já que sua sobrevivência está ligada, principalmente, às suas funções reprodutivas.

Apesar de não terem a pior qualidade de vida, as Aias são as que mais sofrem repressões na República de Gilead, tanto que apesar de lhes ser permitido sair em duplas para fazer compras, contudo são proibidas de conversarem, tendo apenas o direito de se cumprimentarem de acordo com as normas de comportamentos prescritas para elas, as quais se vigiam, mutuamente. A protagonista deixa muito explícito através de seu relato que elas são treinadas a condenar, julgar e odiar umas às outras:
“Não temos permissão para ir lá exceto em pares. Supostamente, isso é para nossa proteção, embora a ideia seja absurda: já somos bem protegidas. A verdade é que ela é minha espiã, como eu sou a dela.”— O Conto da Aia

Percebe-se que não só as mulheres sofrem restrição sexual, mas os homens também, pois de acordo com a classe eles têm permissão ou não para se casar. Também usam uniformes e precisam construir novas identidades dentro do sistema.

Nota-se que ao se despirem dos uniformes representativos das ideologias de Gilead, os corpos das personagens são expostos simplesmente como seres humanos comuns, dotados ou não de poder social. As vestes dos Comandantes são de cor preta, dando a Offred a impressão de impenetrabilidade, sugestivas de misteriosas intenções.

Porém, sem o autoritarismo que o uniforme impõe, Offred reconhece que o Comandante apresenta um corpo que denuncia o desgaste do tempo... destituído de poder, enfatizando a força que os trajes representam na obra.

[...] Chegou à camisa, então, debaixo dela, tristemente, uma barriguinha. Fiapos de cabelo [...] sem seu uniforme ele parece menor, mais velho, como algo ficando seco.— O Conto da Aia

A história começa quando Offred passa a ser aia na residência de Fred, o Comandante, que é um alto funcionário da República de Gilead que só deve ter contato com Offred durante o "ritual" destinado à reprodução e no qual a esposa do Comandante, Serena Joy,  está presente.

Entretanto, mesmo sabendo das regras, Fred mantém um relacionamento ilegal e ambíguo com Offred e, em troca,  oferece-lhe produtos escondidos ou contrabandeados, como revistas de moda antigas, cosméticos e roupas; leva-a ao bordel secreto administrado pelo governo e encontra-se furtivamente com ela em seu escritório, onde ele permite que ela leia, uma atividade proibida para as mulheres.

Observa-se que Serena Joy, esposa do comandante Fred, apesar de  sentir repugnância, humilhação e vergonha pela situação tão desconfortante para ela quanto para Offred, as motivações desse ato sexual são distintas, já que para Offred, a Cerimônia é um ato de violência sexual e desrespeito com seu corpo, para Serena representa o sentimento de despeito por ela precisar de Offred para atingir seu objetivo: ter um filho.

É possível identificar que, neste jogo de poderes, ironicamente, o Comandante, também, é incapaz de engravidar a Aia. Existe, assim, a máscara convencionada, aceita pela Esposa e pelo Comandante. Se por um lado Serena não gosta de Offred, por outro, esta representa a  única chance de dar um filho ao Comandante, estabelecendo-se assim uma relação de cumplicidade quando Serena pede a Offred e a Nick (motorista da família) que mantenham relações para que a protagonista possa engravidare, e, em troca, Offred recebe notícias de sua filha,  a quem Offred não vê  desde que ela fora capturada.

Serena, aparentemente, sabe de que o Comandante quebra as regras em relação a receber itens de contrabando, mas, o que ela não tolera é o marido se tornar muito familiarizado com suas aias. Nota-se que quando Serena descobriu que a antecessora de Offred visitava o marido escondida, fica implícito que a aia cometeu suicídio em parte por medo do que Serena faria.

Um aspecto interessante relacionado à submissão e subversão de Offred  é observado  após o encontro inicial dela com Nick, os dois se envolvem, e apesar de seu estado de cautela durante a maior parte da obra, Offred arrisca tudo para manter um relacionamento com Nick, já que ela encontra nessa relação a liberdade de substituir as fantasias afetivas reprimidas pelo sistema por outras que fazem realçar os seus reais desejos, que  o que de certa forma mostra que Atwood se manteve presa à meta tradicional e patriarcal de um romance, opondo-se desta forma à fama feminista atribuída ao livro.

Além de Nick, três personagens se destacam por sua subversão ao sistema; a mãe de Offred; Ofglen, sua parceira de caminhadas; e Moira, sua melhor amiga. Tanto Offred quanto as outras personagens possuem linguagem própria independente da voz autoral de Atwood, o que pode ser comprovado a partir da relação entre Offred, sua mãe, Moira e Ofglen. 

Acerca da vigilância constante, Offred reflete sobre uma das funções de Ofglen: “A verdade é que ela é minha espiã, como eu sou a dela. Se alguma de nós escapulir da rede por causa de alguma coisa que aconteça em uma de nossas caminhadas diárias, a outra será responsável”.

Ofglen pode ser um Olho para testar a protagonista, assim como Nick poderia ser um, ou qualquer outra pessoa. Assim, mesmo que Offred não veja o vigilante ou em quais momentos está sendo vigiada, ela procura seguir as normas.

A mãe de Offred, feminista no período pré-Gileadiano, é descrita na obra como uma ativista feminista, que durante toda a vida lutou pelos seus ideais e  por não aceitar as exigências do regime, é enviada às Colônias, o que mostra o seu caráter subversivo.

Observa-se que Ofglen , apesar de fazer parte do movimento Mayday, identifica-se e compactua com a ideologia do sistema e respeita os valores que foram impostos, às quais procura agir corretamente de acordo com as normas porque acredita que sempre há alguém que pode delatá-la caso cometa alguma infração. Ofglen convida Offred a participar do grupo de resistência Mayday, cujo objetivo é um salvamento coletivo, mas, no final da obra, comete suicídio para evitar ser capturada pelos Olhos, o serviço secreto de Gilead.

Por sua vez, Moira, entre as três, é a que possui mais destaque na narrativa. Moira serve como inspiração para Offred que admira sua bravura e resistência em não se deixar influenciar pelas ideologias do regime. Ela representa o elo entre Offred e a vida anterior ao totalitarismo, o que faz com que a protagonista sinta-se segura ao seu lado. Moira utiliza uma linguagem que contém forte ironia carregada de tom humorístico, sendo sua irreverência um dos seus traços marcantes que é usado pela autora como recurso para quebrar a tensão e a seriedade da narrativa. Entretanto, Moira foge do Centro e vai viver na Casa de Jezebel — prostíbulo criado e frequentado ilegalmente pelos Comandantes, considerando esta uma opção melhor do que permanecer como aia ou ir para as Colônias.

Nota-se que, enquanto Moira, Ofglen e a mãe da aia possuem personalidades e comportamentos fortemente marcados pela luta dos direitos das mulheres, pelo discurso feminista e pelos movimentos de resistência e lutam contra o sistema diretamente, Offred escolhe enfrentar o regime através de sua narrativa.  

No caso de Offred, o silenciamento imposto a ela pelo sistema é utilizado também como instrumento de sobrevivência, através de sua narrativa secreta:
“Gostaria de acreditar que isso é uma história que estou contando. Preciso acreditar nisso. Tenho que acreditar nisso. Aquelas que conseguem acreditar que essas histórias são apenas histórias têm melhores chances”. O Conto da Aia

Assim, quando Offred narra sua história, ela desnuda o sistema de poder de Gilead, mas também assume poder porque é ela quem comanda a narrativa, ou seja, ela seleciona os fatos, constrói uma imagem dos outros e de si mesma. A partir da recordação de inúmeras vozes, imagens e lembranças da vida antes do golpe, Offred consegue se reconhecer e guardar as memórias como instrumento para evitar a submissão ao sistema, pois, enquanto conseguir se identificar,  não terá se transformado completamente em Offred, ou seja, não irá “pertencer a Fred”, como ela diz:
Meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém usa porque é proibido. Digo a mim mesma que isso não tem importância, seu nome é como o número de telefone, útil apenas para os outros; mas o que digo a mim mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o conhecimento desse nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e buscar, algum dia”. O Conto da Aia

Percebe-se que, em diversos momentos, a narradora declara sua vontade de obter poder, muitas vezes projetando esse desejo em coisas materiais, como, por exemplo, roubar uma caixinha de remédios da sala de estar da casa e escondê-lo, para assim ter uma coisa só sua, um segredo, um poder. Ela revela:
De vez em quando eu a tiraria e olharia para ela. Isso me faria sentir que tenho poder.”  Roubar para possuir algo reflete a necessidade de transgredir as leis, de ultrapassar os limites de sua condição, ser ativa ao invés de se submeter à passividade que sua função social lhe impõe.

Desta forma, pode-se dizer que Offred não é uma heroína que vai lutar contra o sistema imposto a ela, mas sim uma luta interna de manter viva sua história de vida, já que seus pensamentos são as únicas coisas não usurpadas pelo governo.

Na verdade, o que aparentemente parece passividade da protagonista ao não se rebelar publicamente contra as autoridades, torna-se uma estratégia, já que Offred   observa as mudanças sociais, não as reconhecendo como pertencentes ao seu mundo e, aos poucos, de forma encoberta, sem o conhecimento dos pilares do poder de Gilead, luta e protesta contra a opressão usando a palavra através de um gravador no qual narra sua trajetória e a de seu país.

O foco narrativo centrado em Offred é uma forma de alertar que em uma sociedade todos estão passíveis de sofrerem a retirada da liberdade de qualquer natureza, porém, assim como é vital manter a esperança de dias melhores, também é indispensável manter os olhos e ouvidos atentos, pois como diz uma das sentenças mais emblemáticas do romance: “Nolite te bastardes carborundorum”, cujo significado é “Não permita que os bastardos reduzam você a cinzas”. — O Conto da Aia

Atwood sustenta que a República de Gilead é apenas uma extrapolação das tendências observadas nos Estados Unidos no momento em que escreveu a obra. Ao imaginar um país comandado por cristãos radicais,  aborda as possibilidades de dominação que povos podem sofrer, independente de credos, raças ou culturas, mostrando que tudo o que é relatado já aconteceu, acontece ou ainda vai acontecer em algum lugar do mundo.

"É difícil não associar as preocupações sociais que o livro lança ainda nos anos 1980 ao cenário político mundial atual", diz a escritora.

Todo esse contexto pode levar o leitor a se deparar com um futuro desastroso, em que salvação parece impossível. Porém, Atwood, ao comentar a obra, alerta:
“E o meu livro não é totalmente sombrio e nem pessimista, por várias razões. O personagem central — a Aia Offred — escapa. A possibilidade da fuga existe. A sociedade existente no futuro que não é a sociedade de Gilead e é capaz de refletir sobre a sociedade de Gilead da mesma forma que nós refletimos sobre o século XVII”.

Em verdade, Atwood através da protagonista Offred, alerta a passividade da sociedade enquanto tudo acontecia, já que muitos acreditavam que tudo o que estava acontecendo era realmente o melhor. É aí que a autora chama a atenção do leitor para o perigo de não enxergar o que está acontecendo ao seu redor, conduzindo-o a refletir de que forma está contribuindo para que a reconstituição feita por Offred se torne uma possível reconstrução da própria história.

“Eu não coloquei nada que ainda tenhamos feito, estejamos fazendo, estamos tentando seriamente fazer, juntamente com as tendências que já estão em andamento … Então, todas essas coisas são reais e, portanto, a quantidade de invenção pura é quase nula”— Margaret Atwood em uma entrevista para um fórum sobre gênero em 2004.

A obra leva o leitor a refletir sobre aspectos sociais, econômicos, políticos e ecológicos na sociedade contemporânea. É uma daquelas leituras que deixa o leitor ansioso pelo fim da trama, mas que nem sempre apresenta o final esperado.  Assim, quando Offred entra na “van preta – Os Olhos” para um destino desconhecido, o leitor se pega revirando as últimas páginas para trás e para frente em busca de uma pista que possa indicar o futuro de Offred — Morte, Prisão ou Liberdade?

"Está tudo bem. É o Mayday. Vá com eles.” — diz Nick.  “Se esse é o meu fim ou um novo começo, não tenho como saber: entreguei-me às mãos de estranhos, porque não pode ser ajudado. E então eu passo para dentro da escuridão; ou então a luz.” diz Offred

O livro encerra com um capítulo do livro ou posfácio, intitulado por Atwood de  “Notas Históricas”, onde a autora revela as informações que levaram a essa distopia com um final intrigante, já que termina sem indicar exatamente o destino da protagonista.

O epílogo é "uma transcrição parcial dos trabalhos do Décimo Segundo Simpósio de Estudos Gileadeanos", escrito no ano de 2195. De acordo com o "palestrante" do simpósio, o professor Pieixoto, ele e seu colega, o professor Knotly Wade, descobriram a história de Offred gravada em fitas cassete e transcreveram as fitas, chamando-as coletivamente de "O Conto da Serva".

Pieixoto descreve como Offred se tornou uma serva, fala sobre os vários fatores que levam à infertilidade, de doenças à poluição e, mais tarde, menciona que um vírus de esterilidade foi criado especialmente como arma. Ele também relata a dificuldade de encontrar algo mais sobre Offred, Luke , Nick , Moira ou Janine, já que esses podem ter sido nomes falsos. Ele suspeita que Offred possa ter feito as fitas dentro de Gilead para ajudar Mayday.

No entanto, o epílogo implica que, após o colapso da república teocrática de Gilead, uma sociedade mais igualitária, embora não os Estados Unidos que existiam anteriormente, reaparece com a restauração dos direitos plenos das mulheres e da liberdade de religião.

Mas, o que aconteceu com Offred? Esta é a pergunta que o professor Pieixoto se faz. Talvez ela tenha chegado ao Canadá e depois à Inglaterra, o que era mais seguro;  talvez ela tenha sido capturada; talvez ela tenha se isolado da sociedade. Ou, quem sabe, depois da morte de Ofglen, Nick poderia ter matado Offred para se proteger, mas, então por que ele permitiu que ela fugisse com “Os Olhos Rebeldes”?

O final do discurso de Pieixoto pode ser a passagem mais importante do livro sobre o amor, já que de um ponto de vista histórico, podemos entender o quão inesperada e irracional foi a ação de Nick. Apesar de toda a sua falta de emoção, teria ele salvo  Offred por causa do amor?

Apesar de ter-se avançado 200 anos, descobre-se uma sociedade muito parecida com a sociedade pré-Gileadeana, o que sugere um modelo cíclico ao invés de linear da história. E o fato de a sociedade voltar à forma que possibilitou a instituição de Gilead, serve como uma forma de reforçar o alerta que transcorre em toda a obra.

Pode-se dizer que, o epílogo Notas Históricas Sobre O Conto da Aia é um convite ao leitor a fazer uma releitura crítica da obra, analisando não apenas a história feita por um historiador acadêmico, mas também sua própria posição como leitor, reconsiderando, se for o caso,  as implicações de suas interpretações.

Finalizando, se você é um dos milhões de fãs que de fato espera ansioso pela continuação de O Conto de Aia, saiba que Atwood retoma a história, 15 anos depois da cena final de Offred, e escreve The Testaments (Os Testamentos ou As Provas, em tradução livre), cuja história será narrada por três personagens femininas de Gilead. O lançamento está previsto para meados de setembro de 2019.

“Caros leitores: Tudo o que você me perguntou sobre a Gilead e seu funcionamento interno é a inspiração para este livro. Bem, quase tudo! A outra inspiração é o mundo em que vivemos”, afirma Margaret Atwood.


Título: O Conto da Aia
Título original: The Handmaid's Tale
Autora: Margaret Atwood
Tradução: Ana Deiró
Editora: Rocco
Ano: 2017
Preço: A partir de R$: 44,50        (E-book: R$: 28,90)

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