Torto Arado – Itamar Vieira Junior

“Torto Arado, eu penso nesse instrumento agrícola que atravessou um século, como os personagens o atravessam ao mesmo tempo. O Torto Arado é antigo, distorcido que não faz bem o seu trabalho, não faz sulco bonito na terra são até deformados e isso mostra essa distorção da sociedade, dessas pessoas que tem comportamentos terríveis, que tem de ser modificados e foi um título que se encaixou bem e para mim era perfeito.” — Itamar Vieira Junior

Torto Arado, romance do jovem escritor baiano Itamar Vieira Junior, antes mesmo de sua publicação, ganhou o Prêmio LeYa de Romance, em 2018, e teve seu lançamento em Portugal pela editora portuguesa LeYa antes de chegar ao Brasil pela Todavia, em 2019, onde, atualmente, está em sua sétima ou oitava reimpressão.  Em 2020, venceu os prêmios Jabuti de melhor romance literário e o prêmio Oceanos,  considerado um dos prêmios literários mais importantes entre os países de língua portuguesa.

Geógrafo de formação e funcionário público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a partir de suas experiências teóricas e práticas relacionadas à terra, e dos conflitos historicamente produzidos em torno dela, Itamar Vieira Junior conduz o leitor a um mergulho no Brasil um tanto quanto desconhecido, principalmente por quem vive nas grandes metrópoles. Um Brasil que, após mais de 130 anos da assinatura da Lei Áurea, insiste em não acertar as contas com o passado escravocrata.

Torto Arado, mais que o título desta obra, representa um instrumento agrícola arcaico usado pelos antepassados das protagonistas na lida com a terra, atravessa o tempo para representar essa herança escravocrata de tantas desigualdades, marcados pela violência, a seca e também pelas crenças, lendas e religiosidades próprias da mestiçagem cultural e da ancestralidade africana. Trata-se de um livro atemporal, cuja história se passa no interior do sertão brasileiro e tem como centro da história a família de Zeca Chapéu Grande, um líder comunitário e espiritual, sua esposa Salustiana, e suas filhas Bibiana e Belonísia, descendentes de escravizados. 

A narrativa se passa numa fazenda, Água Negra, habitada por negros, um quilombo com donos a distância, lá na Bahia. Terras herdadas pelo dono das antigas sesmarias, cuja religião é o Jarê, uma prática religiosa de matriz africana presente exclusivamente na região da Chapada Diamantina-Bahia.

O livro é dividido em três partes e cada qual tem um foco narrativo em terceira pessoa.   A primeira “Fio de Corte” é narrada por Bibiana; a segunda, “Torto Arado”, por sua irmã Belonísia e a última “Rio de Sangue”— ganha voz, ainda que não tenha corpo—, é narrada por Santa Rita Pescadeira, um dos encantados do jarê que vai observar, rever e esclarecer questões lançadas nas memórias das duas irmãs.

É habilidosa a maneira com que o autor se utiliza das três vozes que conduzem os movimentos do livro, sendo duas delas das irmãs ligadas por conta de um acidente e depois desligadas por conta da rivalidade de um amor, que as farão tomar destinos diferentes, sofrerem mais ou menos iguais e divergirem no modo de entender suas condições de filhas do campo.

E é por meio dessas vozes que são apresentadas a exploração, a fome, a seca, as relações de poder, as ameaças e a violência experimentadas pelos filhos e filhas “da gente forte que atravessou um oceano, que foi separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e iluminada. Gente que atravessou tudo, suportando a crueldade que lhes foi imposta”.

Em Torto arado, a voz e o silêncio, o medo e a coragem, a fertilidade e a infertilidade, a cidade e o campo são alguns dos opostos que definem as irmãs. Enquanto Bibiana sonha em ser professora e foge para a cidade para se formar, regressando depois com uma família de muitos filhos, Belonísia é uma força da natureza, privada da maternidade e cuja única educação que lhe interessa são os ensinamentos do pai sobre a terra.

A vida e as lutas do mundo rural que estão contadas em Torto Arado,  acompanha a família das irmãs de personalidades e sonhos um tanto distintos, no cotidiano de Água Negra, no sertão da Bahia, em uma fazenda da Chapada Diamantina, na Bahia, cerca de 50 anos após o fim da escravidão no país.

José Alcino (o pai), o Zeca Chapéu Grande, era descendente de escravos e ex-escravos que eram agrupados por fazendeiros vivendo amontoados em barracões, sem direito a ter casa ou a plantar roça.  Donana, a avó das irmãs, nasceu e viveu na Fazenda Caxangá, num momento em que os trabalhadores já podiam construir suas casas de barro.

Zeca Chapéu Grande, um de seus onze filhos, ainda em Caxangá enlouquece ou é “encantado”, como contam as duas versões de sua indisposição para o trabalho e do seu desaparecimento. Ele vaga pela mata e, quando encontra a fazenda Água Negra, da família Peixoto, “pede morada”, oferecendo trabalho em troca de pouso e de poder “botar roça” para o próprio sustento. Consegue ali se estabelecer, formar família e buscar a mãe. Com Salustiana, sua mulher, tem as filhas Bibiana, Belonísia, Domingas, e o filho Zezé.

As condições de vida dos trabalhadores de Água Negra permanecem as mesmas do tempo em que Zeca nasceu (por volta de 1918), pelo menos até a década de 1980. Eles poderiam viver no local, em um pequeno pedaço de terra, desde que os homens fossem responsáveis pelo trabalho na terra, enquanto as mulheres e crianças poderiam cuidar de plantações próprias, onde cultivariam alimentos para viver.

Essas famílias não poderiam construir casas de alvenaria, apenas de barro, para que não tivessem garantias de permanência na fazenda. Assim, sem qualquer tipo de assistência, acaba com a possibilidade de meninos e meninas ultrapassarem a primeira infância, já que as famílias acabam por viver uma vida muito parecida com a escravidão.

“Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por morada.  A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos…”.

Assim como na fazenda Água Negra a região é cheia de fazendas em que os trabalhadores têm condições de trabalho e sobrevivência muito parecidas com as que a família das nossas protagonistas tem. Por outro lado, plantar roça só é permitido para uso próprio, embora, muitas vezes o produto da horta seja levado pelo patrão e pelo gerente da fazenda, sem permissão dos trabalhadores, já que a terra é deles.

Durante muitos anos, a comunidade vive apenas do que produz para ela mesmo na roça ou com o que a natureza lhes dá, peixes e frutos. Sentem-se satisfeitos com a possibilidade da subsistência “concedida” pelos donos da terra, e não parecem ter aspirações para além disso, já que o vínculo salarial não está sequer colocado como possibilidade, numa região isolada, relativamente distante da cidade e dominada pela tradição dos coronéis.

Os moradores sabem que, fora da fazenda, o dinheiro é necessário e na terra tinham o que colher ao alcance das mãos. Porém, com o passar dos anos, a compra de mercadorias torna-se uma alternativa e Belonísia e Bibiana, ainda crianças, costumam ir à feira da cidade, às escondidas, para vender o que extraem da natureza ou fabricam (polpa de buriti e azeite de dendê) e assim obter o dinheiro de que precisam para a compra de mantimentos; quando a seca mais prolongada compromete a produção da roça.

Bibiana e Belonísia, as irmãs protagonistas desta história, seus pais, Zeca Chapéu Grande e Salustiana, e sua avó, Donana, trazem a história das duas irmãs que se unem por um acidente que marca profundamente a vida das duas , tornando-se uma a voz da outra. São duas mulheres fortes, que levam suas vidas por caminhos diferentes, mas ambas donas de seu destino.

Zeca Chapéu Grande é a representação do trabalhador que aceita a condição semi-servil sem questioná-la. É respeitado por vizinhos e filhos de santo, devido a suas atividades nos jarês e como curandeiro. Seus patrões e Sutério (o gerente de Água Negra), também o respeitam, por ser trabalhador incansável, fazer tudo o que lhe é pedido e trazer novos trabalhadores para a fazenda, atenuando ainda os conflitos entre eles e entre moradores e proprietários.

Obediência e insubordinação guiam o romance, que conta um Brasil que manda e outro que obedece. O ambiente da história, além da fauna e da flora, da roça, do rio, do chão, cos costumes, outro cenário protagonista em Torto Arado são as noites de Jarê, religião praticada exclusivamente na Chapada Diamantina, que mescla referências da umbanda, candomblé, catolicismo, xamanismo e espiritismo, e que é regida pelos encantados, entidades presentes no cotidiano da comunidade para além da dimensão sobrenatural.

Os seus jarês são reconhecidos pela comunidade da fazenda e de outras regiões, bem como por brancos poderosos. Assim, quando Zeca Chapéu Grande cura o filho do prefeito, ele exige o cumprimento da promessa de que a prefeitura contratará um professor para alfabetizar as crianças da comunidade.

A história de Zeca é contada por suas filhas Bibiana e Belonísia, em fragmentos que vão pouco a pouco construindo sua figura de homem trabalhador que, grato pelo acolhimento na fazenda quando estava sem pouso e só tinha a oferecer sua força de trabalho, não confrontava nem permitia que ninguém afrontasse os que o haviam acolhido: os Peixoto, donos de Água Negra, que existia desde 1932, em terras obtidas pela família ao tempo das Sesmarias.

Entretanto, com a venda da fazenda, decorrente do desinteresse dos herdeiros que não queriam continuar com a propriedade Água Negra,  ocorrem alterações nas condições de vida da comunidade e nas relações com o novo proprietário — Salomão — que inicialmente se apresenta como benfeitor, dizendo que nada se alteraria e que nada tinha contra os negros de quem ele mesmo era descendente, com orgulho.

No entanto, logo proíbe o enterro dos mortos no cemitério da comunidade, alegando razões ambientalistas para construir sua casa, porém, derruba pés de buritis e dendês, que, além de constituírem parte do bioma da região, é a fonte da produção que a comunidade vende.

Salomão implanta a instituição do regime salarial, instalando o barracão de mantimentos, fazendo com que os moradores ali tenham de “comprar” seus suprimentos e, assim, eles não apenas nunca recebem o salário em dinheiro como também se endividam e são obrigados a permanecer na fazenda. Essas mudanças trazem para a comunidade novas formas de dominação e de opressão.

O enredo tem como ponto de partida o grande acidente o qual mutilou a língua de uma das irmãs e marcou, para sempre, a vida de todos. A divisão do romance com a narrativa de Bibiana e a de Belonísia mostra que uma mudança começa a ocorrer na família, quando as irmãs, juntas, fascinadas em descobrir o segredo guardado pela avó Donana em uma mala que, aliás, estava sempre pronta para, a qualquer hora,  deixar a fazenda Água Negra e voltar à sua terra de origem, descobrem uma faca com cabo de marfim e lâmina reluzente, que as encanta.

Fascinadas com sua luminosidade e surpreendidas pela matriarca da família, em meio ao susto e à falta de manejo com o objeto cortante, acaba cortando a boca de uma e decepando a língua de outra, o que a impede de falar e, consequentemente, lhe impõe uma vida inteira de silêncio.

“Por que a faca estava envolta naquele tecido sujo de sangue?” (…) por que minha avó guardava essa faca com tanto medo? (…) minha avó tinha mais medo do que essa faca significava”.

Mas... se não existe fala, existe a escrita caudalosa. E assim começa a história de Bibiana e Belonísia.  A partir do episódio, Belonísia e Bibiana passam a se comunicar uma pela outra, e surge um laço quase indestrutível que liga a história das irmãs até a última página. Assim, o não dito é tão importante quanto o que está impresso no papel. Uma irmã torna-se a voz da outra, e, como estão descritos os gestos, mas não as palavras das personagens, o leitor não sabe quem foi mutilada até chegar a um terço do romance.

Bibiana passa a falar por Belonísia, e Belonísia se expressa através de gestos e expressões que Bibiana aprende a traduzir. A faca, então, se torna símbolo do infortúnio na família de Zeca e do mistério de um crime cometido por Donana no passado. Horrorizada com o que aconteceu às netas, leva o “mal” (entende-se que seja a faca com cabo de marfim) para o rio.

Aos poucos, ambas desenvolvem uma consciência política ao seu próprio modo. Bibiana se aproxima de sindicatos e movimentos sociais para reivindicar seus direitos. Bibiana traz a dureza da seca que rareava os alimentos e os peixes dos rios, como também dos períodos de abundância de chuvas, que muitas vezes destruíam plantações inteiras. 

Por outro lado, Belonísia mesmo impedida de falar, luta, talvez sem saber, no campo, enfrentando a violência machista e a ganância dos poderosos. Belonísia dá voz aos que, assim como ela, vivem uma vida marcada pelas restrições e senões. Ela nos conta das casas de barro, “sem o tal de banheiro que ninguém tinha mesmo”, uma imposição dos donos das fazendas que não suportavam a ideia de que os trabalhadores tivessem moradias que em alguma medida se parecessem com as casas-grandes.

A união das irmãs, no entanto, começa a romper-se com a chegada do irmão de Salustiana, o tio Servó, e sua família, que se estabelecem em Água Negra como trabalhadores. Um de seus filhos, Severo, primo de Bibiana e Belonísia, tem muitos sonhos e planos, junta-se a sindicatos que possam favorecer e lhes atribuir o que é de direito.

Severo atrai a atenção das duas irmãs e se inicia um conflito entre elas. Rompendo com costumes estabelecidos, Severo deseja sair da fazenda para estudar e ter a própria terra. Ele é um retrato da luta por liberdade e dignidade do povo negro descendente de pessoas escravizadas trazidas da África para o Brasil durante séculos de colônia. Bibiana nunca havia conhecido alguém que lhes dissesse ser possível uma vida além da fazenda, assim, já grávida dele, foge com Severo, apesar de sentir que está traindo os pais.

A ruptura da relação entre as irmãs, narrada nas duas primeiras partes do romance, assinala os dois caminhos que toma o enredo, os quais mostram diferentes possibilidades de atuação na comunidade de Água Negra.

Bibiana cursa supletivo e magistério na cidade e a conscientização política a encaminham para a militância. Severo, seu mentor político, acreditava que a instrução na cidade lhe permitiria mudar de vida.

Já Belonísia, que não tem interesse pelos estudos segue o caminho de seu pai, mantendo vivo o saber tradicional: o cultivo da terra e o conhecimento da natureza, guiado pelo valor dado ao trabalho com a terra, onde estão enraizadas a história de sofrimentos e as crenças ancestrais do seu povo. Esse trajeto também a conduzirá a atuar contra a opressão e violência masculina de seu companheiro (Tobias) e dos homens que estão à sua volta (Aparecido, o marido de Maria Cabocla que, bêbado, bate nela).

O silêncio a que ela havia sido condenada não a impede de tentar falar quando está só. Na primeira vez em que ela se arrisca, ainda criança, escolhe a palavra “arado”, pois se associa ao trabalho do pai, com aquele arado “troncho e velho”, como ele dizia. Mas os sons irreconhecíveis que emite eram um “arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada”.

A partir daí, só ousa falar quando está só e tudo o que dizia, nesses momentos, era repetir, com o horror de seus sons, as palavras carregadas de rancor gritadas por sua avó, sua mãe que chegavam até ela.

“O som que deixou minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada.(…)seria  bom ter um arado novo, esse arado está troncho e velho.”

Com o retorno de Bibiana e Severo a Água Negra, aos poucos,  as duas irmãs superam a distância entre elas. Bibiana dá aulas na fazenda e, com entusiasmo, ensina às crianças a história da opressão de seu povo, os negros, desde a escravidão e, apoia incondicionalmente, a militância de Severo. Belonísia, por sua vez,  como continuadora da sabedoria paterna e como figura que, ao narrar, preserva a memória do que houve, no passado remoto e no passado próximo.

A atuação de Severo traz mudanças na comunidade ao expor o quanto eles estão privados dos direitos que são reconhecidos para as comunidades tradicionais, insistindo na necessidade de se criar uma Associação de Trabalhadores Rurais. Com a influência da militância de Severo junto aos moradores de Água Negra, fica dividida a ordem moral estabelecida por Zeca Chapéu Grande, para quem a atitude e as ações de Severo eram consideradas ingratidão para com aqueles que lhes haviam dado abrigo.

Zezé, irmão mais novo de Belonísia e Bibiana, acompanha Severo em seu esforço de esclarecimento e de organização dos moradores. Mas ambos não falam sobre isso com Zeca, para não desrespeitar a sua pessoa e o que ele representou, em tempos anteriores, na vida da comunidade.

A mentalidade que dominara em Água Negra por décadas começa a se alterar, dando lugar à consciência sobre direitos. Severo fala à comunidade que o trabalho não lhes trazia a posse de nada, senão a cova rasa no cemitério. Que o direito à indenização só era cumprido depois de muitas delongas e exigências burocráticas. Que não havia salário. Que, após a mudança dos donos da fazenda, os trabalhadores tinham de comprar os produtos em seu galpão e assim ficavam endividados. Que a casa, de barro, tinha de ser refeita de tempos em tempos. Que eles tinham o direito a casas de alvenaria.

Vários trabalhadores aderem à luta e a comunidade se move para conquistar suas reivindicações. Mas Salomão passa a ameaçar os trabalhadores engajados. Severo colhe assinaturas para fundar a Associação de Trabalhadores Rurais e acaba sendo assassinado enquanto se dirigia ao cartório, sem que jamais se soubesse quem foram os assassinos.

Com o assassinato de Severo (que finaliza a II Parte do romance), num momento em que as tradições da comunidade estão caindo em esquecimento, surge a encantada, Santa Rita Pescadeira, para mudar o rumo dos acontecimentos.

Nesse momento, ela não tem mais “moradia”, pois seu cavalo (Dona Miúda) morrera e já não há casas de jarês. Sem rumo, vagando, é ela quem esclarece o mistério da faca: com ela Donana matara o próprio companheiro pois encontrara-o na cama com sua filha, Carmelita. A filha sumira no mundo. Donana guardava a faca, manchada de sangue, como símbolo de sua vingança e da perda do que lhe era querido. Mas, após o acidente com as irmãs, jogara-a no rio.

Belonísia encontra a faca casualmente, na casa de Tobias, o companheiro violento com quem passara a morar. Dona de si, sem mais o temor e a obediência a Tobias, já morto, pode dar livre curso àquilo que a mobiliza: cultiva a terra, produz e se forma nesse cultivo, retomando as lições paternas. É a figura que mantém viva a tradição.

Duas mulheres, com caminhos diversos – Bibiana e seu impulso progressista, Belonísia e seu amor ao saber tradicional –, são os cavalos que Santa Rita Pescadeira escolhe para vingar a morte de Severo e livrar-se das atrocidades de Salomão, o mandante do crime. O sangue dos espoliados, que corre desde o passado, é vingado no corpo do proprietário.

Sob transe, cada uma das irmãs realiza o que a encantada comanda. Bibiana, durante o sono, é levada para encontrar uma enxada e cavar até construir uma cova, ou, mais precisamente, um fojo – armadilha para caçar animais ferozes, feita com um buraco profundo no chão e disfarçado com ramos e galhos. Belonísia, “a fúria que havia cruzado o tempo” assassina Salomão, degolando-o.

Para compreender o significado do assassinato de Salomão, é preciso lembrar que, embora a luta dos trabalhadores se torne mais débil após a morte de Severo, ganha novo ímpeto quando eles decidem construir suas casas de alvenaria. No entanto, o proprietário entra na Justiça com o pedido de reintegração de posse. A comunidade, disposta a enfrentar a decisão judicial, provavelmente favorável ao proprietário, mobiliza-se para o enfrentamento, caso fosse necessário, mas o confronto não ocorre devido ao assassinato de Salomão.

Entretanto, surgem novos problemas para a comunidade, pois todos, em especial Bibiana, são considerados suspeitos. No assassinato de Severo, os capangas e o mandante haviam saído impunes, e a versão oficial sobre os motivos de sua morte era a de que resultara de um conflito entre traficantes.

Já a morte de Salomão é investigada com base em relatos dos conflitos que ele criava com os trabalhadores de Água Negra e de outras fazendas de sua propriedade e das “discórdias com empregados e vizinhos”. Por onde ele havia passado deixou um rastro de descontentamento e desejo de revide. No romance, parece nula a possibilidade de conquistar os direitos reivindicados no quadro da legalidade burguesa. No entanto, a mobilização da comunidade é reativada pela intervenção da encantada.

É Santa Rita Pescadeira que, no plano da construção do romance, revitaliza a ancestralidade com a tradição de opressão sofrida pelo povo negro. “Sou uma velha encantada, muito antiga, que acompanhou esse povo desde sua chegada das Minas, do Recôncavo, da África. Talvez tenham esquecido Santa Rita Pescadeira, mas a minha memória não permite esquecer o que sofri com muita gente, fugindo de disputas de terra, da violência de homens armados, da seca. Atravessei o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio bravo. A luta era desigual e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes”.

Com a morte de Salomão, a comunidade passa a ser conhecida publicamente: “Meses depois, a notícia dos assassinatos (de Salomão e Severo) trouxe funcionários de órgãos públicos, que ouviram moradores num processo de reintegração de posse. Aquela chegada foi celebrada com alívio. Tudo permanecia incerto, não havia prazos para a solução do problema, mas aquela movimentação indicava que a existência de Água Negra já era um fato. Não eram mais invisíveis, nem mesmo poderiam ser ignorados”.

Ainda que Torto Arado pareça continuar a defender a perspectiva do reconhecimento legal dos direitos dos quilombolas, o novo movimento da comunidade se concentra no direito de morar. E, quase ao final do romance, Inácio – filho de Severo e Bibiana – despede-se de Água Negra porque quer preparar-se para entrar na Universidade e se tornar professor e, como o pai havia feito, participar dos movimentos de luta pela terra.  No momento em que Inácio parte, Bibiana e Belonísia, cada uma em seu trajeto – na escola e na terra – perdoam-se, superando as mágoas.

Santa Rita Pescadeira talvez tenha agido pela última vez, porque se anuncia nova configuração social em Água Negra quando a comunidade poderá ser reconhecida como sujeito de direito. Entretanto, a memória da opressão histórica a que ela dá voz, permanece viva, pelas vozes das narradoras Bibiana e Belonísia, que sustenta a continuidade da luta política por direitos.

Pode-se dizer que, no começo, Torto Arado parece contar apenas a história das irmãs, entretanto, com o virar de páginas, percebe-se que a obra é um retrato do sertão brasileiro, onde se misturam crenças, lendas, religião, trabalho análogo à escravidão, seca, sofrimento, violência, gratidão, escravidão, ancestralidade em sua essência, com os castigos impostos pela terra, pelo clima, pela estiagem, e pelos donos das terras.

A faca de cabo de marfim, o arado, a língua, o vento, são como objetos cortantes que atravessam os tempos, constroem histórias, ferindo e fortalecendo. Esse arado que, assim como sulca a terra, rasga a alma de cada morador de Água Negra. Torto arado é um romance definitivamente clássico capaz de atravessar gerações com histórias que permanecem atuais.

Trata-se de uma ficção que vai muito além da relação das duas irmãs. Talvez a vida retratada na fazenda Água Negra seja apenas “um clique” da situação atual na qual vivemos e que nos leva a questionar sobre nossa própria realidade.

“Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida…”

 

Título: Torto Arado

Autor: Itamar Vieira Junior

Editora: Todavia, SP, 2019, 264 p.

Preço: Edição papel: A partir de R$ 37,90

          Edição digital: A partir de R$ 31,41

 

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