A vida invisível de Eurídice Gusmão — Martha Batalha


A vida invisível de Eurídice Gusmão, primeiro romance da jornalista, editora e escritora pernambucana Martha Batalha, apresenta a trajetória de Eurídice Gusmão na luta contra uma sociedade paternalista e conservadora, onde as mulheres da classe média do Rio de Janeiro dos anos 40, eram excluídas da sociedade, servindo apenas para a execução de atividades ligadas ao lar, relegando-as assim à invisibilidade e não lhes sendo permitido protagonizar a própria vida.

A autora escreve em terceira pessoa, embora, por vezes recorra ao diálogo direto com o leitor. Utiliza-se de um enredo curto, texto descontraído e história envolvente, com foco em Eurídice, uma mulher extremamente talentosa em tudo o que se propõe a fazer, mas que tem seus talentos reprimidos em detrimento da paz familiar e doméstica.

Marta usa a história de Eurídice para apresentar ao leitor outras mulheres que podem ser qualquer uma e todas ao mesmo tempo, mulheres que não têm voz e que são tão invisíveis quanto Eurídice. Ela retrata tão bem a sociedade de qualquer cidade (interior ou capital) que mostra caricaturas de: donas de casa, fofoqueiras, românticas, prostitutas, mentirosas, lutadoras.

Na verdade, a história de Eurídice e, de todas as personagens femininas desse livro, nada mais é do que a história das nossas bisavós, avós, tias, mães e, infelizmente, de muitas outras mulheres até os dias atuais. É a história da invisibilidade, do que “poderia ter sido, mas que nunca foi”.

O leitor é apresentado à protagonista Eurídice, que desde pequena carrega dentro si uma ânsia de ser e de fazer, em uma época em que a mulher devia apenas ser bela, recatada e do lar, o que representa tudo o que Eurídice não quer ser, ela quer apenas ser ela mesma — Eurídice.

"Se Eurídice queria casar? Talvez. Para ela o casamento era algo endêmico, algo que acometia homens e mulheres entre dezoito e vinte e cinco anos. Tipo surto de gripe, só que um pouquinho melhor. O que Eurídice realmente queria era viajar tocando sua flauta. Queria fazer faculdade de engenharia e manter-se fiel aos números. Queria transformar a quitanda dos pais num armazém de secos e molhados, o armazém de secos e molhados em uma empresa distribuidora de grãos, e a empresa num conglomerado. Mas ela não sabia que queria tanto."

Eurídice aprendera a ser obediente, caseira, submissa e a abafar seus desejos, sendo apenas a filha exemplar. Tentava aceitar que seus pais e, depois seu marido, sabiam o que era melhor pra ela, tornando-se assim invisível para satisfazer os padrões impostos por uma sociedade machista, onde as mulheres não devem carregar títulos que não sejam os de mãe, de esposa e de dona de casa.

“Eurídice tinha abafado os desejos, deixando na superfície apenas a menina exemplar. Aquela que não levantava a voz ou o comprimento da saia. Aquela que não tinha sonhos que não fossem os sonhos dos pais. Aquela que só dizia sim senhora ou não senhor, sem nem mesmo se perguntar para o que é o sim ou por que disse o não."

Em paralelo, vemos também a vida da outra jovem Gusmão, Guida, a irmã mais velha de Eurídice, que só entra em cena na metade do livro, cujo papel é fundamental por nos apresentar uma perspectiva da violência de gênero que Eurídice não pode nos dar, afinal ela ainda é uma mulher de classe média alta.

Guida, após cortar os laços com os pais e libertar-se das expectativas deles e de todos em sua volta, incentivada pelo namorado, Marcos, foge de casa atrás do que ela acreditava ser sua chance de ser feliz. Porém, ao descobrir sua gravidez, no momento em que foi abandonada pelo marido, tenta voltar para a casa dos pais, mas infelizmente seu pai nem olha em sua cara.

Decidida a criar seu filho sozinha, Guida passa por situações extremas que futuramente precisará enterrá-las se quiser casar novamente, pois afinal, que homem aceitará uma mulher tão imoral? Mas seria Guida imoral? Ou é apenas uma mulher tentando reconstruir sua vida ao lado do filho?

Quando Guida foge de casa causando tremendo desgosto aos pais, Eurídice promete a si mesma ser a melhor filha do mundo, abandonando o sonho de ser mais que uma simples dona de casa; casando-se com Antenor, funcionário do Banco do Brasil, bom provedor, que nada lhes deixa faltar, porém, um homem incapaz de apreciar e reconhecê-la como uma esposa brilhante e inteligente.  

“Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.”

Marta também aborda a violência sexual conjugal, ao retratar a brutalidade sofrida por Eurídice em plena noite de núpcias, pelo fato de não ter sangrado, apesar de ser virgem. Antenor a acusa de traição, e o amor que poderia ter crescido e florescido entre ambos, acaba sufocado por acusações e tristezas.

“Sozinha na cama, corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabunda que ouviu, pelos vagabunda que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro entre as pernas e depois no coração.”

Antenor decide por não devolver a mulher, afinal, ela sabia cozinhar, lavar, passar muito bem, falava pouco e além do mais tinha um traseiro bonito. Enquanto seu café estivesse passado, seus chinelos próximos a cama e a casa em ordem, tudo estaria bem.  

À medida que a história evolui, encontramos Eurídice com dois filhos (Cecília e Afonso), cuja obrigação dos afazeres domésticos, mais o atendimento às crianças e ao marido, que cumpre à risca os únicos papéis que lhe cabem: a manutenção da autoridade da família e o sustento trabalhando no Banco do Brasil.

É notório que essa vida não é o suficiente para Eurídice que se sente privada de realizar seus sonhos e ambições, já que mantinha adormecido o desejo de ser uma flautista famosa, ou uma estilista renomada, ou quem sabe uma cientista, enfim, qualquer outra coisa que ela quisesse ser, porém, ela era apenas, como tantas outras mulheres — Do Lar.

Na verdade, a grande maioria das mulheres vivia em suas casas, tendo como obrigação somente cuidar dos afazeres domésticos e das crianças, uma vez que qualquer outra atividade podia ser vista como crise financeira ou então má índole e, assim passavam seu tempo ocioso analisando as pessoas na rua.

Eurídice, por sua vez, ao ter seus sonhos boicotados, sente-se triste e desanimada, aumentando assim suas dúvidas sobre sua capacidade. É o caso da noite em que ela mostra ao marido o livro de receitas, cheia de esperanças ante a ideia de publicá-lo, e Antenor ri da esposa, afirmando:“Deixe de besteiras, mulher. Quem compraria um livro feito por uma dona de casa?”.

"Havia a convicção de que Eurídice só podia ser levada a sério quando dizia que o jantar estava na mesa. (...) Seus projetos estavam confinados ao universo daquela casa."

Apesar de toda a resistência à realização de seus projetos, Eurídice aproveita o tempo em que o marido trabalha e os filhos estão na escola, para correr atrás de alguma coisa que lhe permita dar “um significado maior” para sua vida, além daquele de mãe e dona de casa, tanto que uma vez mais, se joga em outro desafio: aprender a costurar.

Após comprar uma máquina de costura, primeiro costura para os filhos e o marido, depois costura roupas cada vez mais elaboradas para si e, posteriormente, começa a costurar para a vizinhança, transformando sua casa num ateliê, até o ponto em que Eurídice precisa contratar ajudantes para dar conta de todo o trabalho, assim Eurídice passa a ganhar bastante dinheiro.

Mas, Antenor ao descobrir sente-se humilhado, afinal, ele agora é gerente do Banco do Brasil, porque sua mulher teria que costurar? Antenor proíbe Eurídice de continuar costurando e ganhando dinheiro, afinal, ele é o provedor da família. Assim, Eurídice, mais uma vez, tem suas vontades reprimidas.

"Com um olho ela vestia Afonso e Cecília para a escola, e com o outro se perguntava: será que a vida é só isso? com um olho ela ajudava as crianças com o dever, e com o outro se perguntava: e quando eles não precisarem mais de mim? com um olho contava histórias, e com o outro se perguntava: existe vida além dos uniformes escolares, da memorização da tabuada e de todas as histórias da carochinha?"

É possível até dizer que a cada projeto sabotado, Eurídice parece ganhar mais força para romper os limites que lhe foram impostos pela sociedade, família, marido.... Assim, uma vez mais, senta-se no sofá (seu lugar predileto para reflexão), olha as unhas e pensa nas possibilidades e descobre a estante de livros na sala, e aí decide estudar as enciclopédias para ensinar seus filhos sobre as coisas do mundo.

É através dessas leituras, que Eurídice  descobre Leon Tolstói (Anna Karenina), Gustave Flaubert (Madame Bovary) e Shakespeare, e se vê motivada a reagir após encontrar nos livros e nas histórias a possibilidade de descobrir novos universos sem sequer sair do lugar.

Por fim, após comprar uma máquina de escrever, Eurídice encontra prazer em escrever e é através da escrita que ela uma vez mais se reinventa na tentativa de romper as barreiras da opressão e da invisibilidade, passando os dias finais de sua vida debruçada nas páginas de livros e páginas escritas, descobrindo assim um novo sentido para sua vida e, finalmente, agora ela podia dar vasão à sua ânsia de ser e de fazer.

Vale citar que Marta procura retratar no romance as inúmeras violências simbólicas que as mulheres sofrem cotidianamente desde a infância; no entanto, a autora deixa claro para os leitores que, na história que se conta, há um recorte de gênero, raça e classe: trata-se da vida de uma mulher de classe média, branca e heterossexual, uma perspectiva privilegiada dentro e fora da narrativa.

Curiosidades sobre a obra:
O livro foi publicado no Reino Unido pela Oneworld Publications com o título de “The Invisible Life of Euridice Gusmao” e teve os direitos vendidos para várias outras editoras estrangeira, tendo sido traduzido para dez idiomas.

Somente após seu sucesso internacional é que a obra foi publicada no Brasil em 2016 pela Companhia de Letras, que tinha anteriormente rejeitado o livro.

Porém, a maior parte da curiosidade em relação ao livro, no Brasil, surgiu quando seus direitos também foram vendidos para uma adaptação para o cinema através do cineasta Karim Aïnouz e o produtor Rodrigo Teixeira que produziram o filme A Vida Invisível, o qual ganhou Prêmio Festival de Cannes Prêmio Un Certain Regard — A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. O filme também ganhou o Prêmio CineCoPro no Festival de Cinema de Munique, além de  ter sido indicado para representar o Brasil como Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia do Oscar de 2020.

Um pouco sobre Martha Batalha
Nasceu em Recife em 1973 e cresceu no Rio de Janeiro. Trabalhou como repórter e criou a editora Desiderata. Mudou-se em 2008 para Nova York, onde fez mestrado em Publishing na NYU e atuou no mercado editorial. Seu romance de estreia, A vida invisível de Eurídice Gusmão, foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Oceanos, além de ter os direitos vendidos para mais de onze países e para o cinema. Martha mora em Santa Mônica, na Califórnia, com seu marido e dois filhos.

Características da obra:
Nome: A vida invisível de Eurídice Gusmão
Autora: Martha Batalha
Editora : Companhia das Letras
Idioma: Português
Ano: 2016
Preço: Ebook kindle — R$  26,82
           Capa dura — A partir de R$ 38,32

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