
A autora escreve em terceira pessoa, embora, por vezes recorra ao diálogo
direto com o leitor. Utiliza-se de um enredo curto, texto descontraído e
história envolvente, com foco em Eurídice, uma mulher extremamente talentosa em
tudo o que se propõe a fazer, mas que tem seus talentos reprimidos em
detrimento da paz familiar e doméstica.
Marta usa a história de Eurídice para apresentar ao leitor outras
mulheres que podem ser qualquer uma e todas ao mesmo tempo, mulheres que não têm
voz e que são tão invisíveis quanto Eurídice. Ela retrata tão bem a sociedade
de qualquer cidade (interior ou capital) que mostra caricaturas de: donas de
casa, fofoqueiras, românticas, prostitutas, mentirosas, lutadoras.
Na verdade, a história de Eurídice e, de todas as personagens femininas
desse livro, nada mais é do que a história das nossas bisavós, avós, tias, mães
e, infelizmente, de muitas outras mulheres até os dias atuais. É a história da
invisibilidade, do que “poderia ter sido,
mas que nunca foi”.
O leitor é apresentado à protagonista Eurídice, que desde pequena carrega
dentro si uma ânsia de ser e de fazer, em uma época em que a mulher devia
apenas ser bela, recatada e do lar, o que representa tudo o que Eurídice não
quer ser, ela quer apenas ser ela mesma — Eurídice.
"Se Eurídice
queria casar? Talvez. Para ela o casamento era algo endêmico, algo que acometia
homens e mulheres entre dezoito e vinte e cinco anos. Tipo surto de gripe, só
que um pouquinho melhor. O que Eurídice realmente queria era viajar tocando sua
flauta. Queria fazer faculdade de engenharia e manter-se fiel aos números.
Queria transformar a quitanda dos pais num armazém de secos e molhados, o
armazém de secos e molhados em uma empresa distribuidora de grãos, e a empresa
num conglomerado. Mas ela não sabia que queria tanto."
Eurídice aprendera a ser obediente, caseira, submissa e a abafar seus
desejos, sendo apenas a filha exemplar. Tentava aceitar que seus pais e, depois
seu marido, sabiam o que era melhor pra ela, tornando-se assim invisível para
satisfazer os padrões impostos por uma sociedade machista, onde as mulheres não
devem carregar títulos que não sejam os de mãe, de esposa e de dona de casa.
“Eurídice tinha
abafado os desejos, deixando na superfície apenas a menina exemplar. Aquela que
não levantava a voz ou o comprimento da saia. Aquela que não tinha sonhos que
não fossem os sonhos dos pais. Aquela que só dizia sim senhora ou não senhor,
sem nem mesmo se perguntar para o que é o sim ou por que disse o não."
Em paralelo, vemos também a
vida da outra jovem Gusmão, Guida, a irmã mais velha de Eurídice, que só entra em cena na metade do livro, cujo papel é fundamental
por nos apresentar uma perspectiva da violência de gênero que Eurídice não pode
nos dar, afinal ela ainda é uma mulher de classe média alta.
Guida, após cortar os laços
com os pais e libertar-se das expectativas deles e de todos em sua volta, incentivada
pelo namorado, Marcos, foge de casa atrás do que ela acreditava ser sua chance
de ser feliz. Porém, ao descobrir sua
gravidez, no momento em que foi abandonada pelo marido, tenta voltar para a
casa dos pais, mas infelizmente seu pai nem olha em sua cara.
Decidida a criar seu filho
sozinha, Guida passa por situações extremas que futuramente precisará
enterrá-las se quiser casar novamente, pois afinal, que homem aceitará uma
mulher tão imoral? Mas seria Guida imoral? Ou é apenas uma mulher tentando
reconstruir sua vida ao lado do filho?
Quando Guida foge de
casa causando tremendo desgosto aos pais, Eurídice promete a si mesma ser a
melhor filha do mundo, abandonando o sonho de ser mais que uma simples dona de
casa; casando-se
com Antenor, funcionário do Banco do Brasil, bom provedor, que nada lhes deixa
faltar, porém, um homem incapaz de apreciar e reconhecê-la como uma esposa brilhante
e inteligente.
“Porque Eurídice, vejam
vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela
projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe
dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram
cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em
seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.”
Marta também aborda a violência sexual conjugal, ao
retratar a brutalidade sofrida por Eurídice em plena noite de núpcias, pelo
fato de não ter sangrado, apesar de ser virgem. Antenor a acusa de traição, e o
amor que poderia ter crescido e florescido entre ambos, acaba sufocado por
acusações e tristezas.
“Sozinha na cama,
corpo escondido sob o cobertor, Eurídice chorava baixinho pelos vagabunda que
ouviu, pelos vagabunda que a rua inteira ouviu. E porque tinha doído, primeiro
entre as pernas e depois no coração.”
Antenor decide por não devolver a mulher, afinal,
ela sabia cozinhar, lavar, passar muito bem, falava pouco e além do mais tinha
um traseiro bonito. Enquanto seu café estivesse passado, seus chinelos próximos
a cama e a casa em ordem, tudo estaria bem.
À medida que a história evolui, encontramos Eurídice
com dois filhos (Cecília e Afonso), cuja
obrigação dos afazeres domésticos, mais o atendimento às crianças e ao marido, que
cumpre à risca os únicos papéis que lhe cabem: a manutenção da autoridade da
família e o sustento trabalhando no Banco do Brasil.
É notório que essa vida não é o suficiente para
Eurídice que se sente privada de realizar seus sonhos e ambições, já que
mantinha adormecido o desejo de ser uma flautista famosa, ou uma estilista
renomada, ou quem sabe uma cientista, enfim, qualquer outra coisa que ela
quisesse ser, porém, ela era apenas, como tantas outras mulheres — Do Lar.
Na verdade, a grande maioria das mulheres vivia em
suas casas, tendo como obrigação somente cuidar dos afazeres domésticos e das
crianças, uma vez que qualquer outra atividade podia ser vista como crise
financeira ou então má índole e, assim passavam seu tempo ocioso analisando as
pessoas na rua.
Eurídice, por sua vez, ao ter seus sonhos boicotados,
sente-se triste e desanimada, aumentando assim suas dúvidas sobre sua
capacidade. É o caso da noite em que ela mostra ao marido o livro de receitas,
cheia de esperanças ante a ideia de publicá-lo, e Antenor ri da esposa,
afirmando:“Deixe de besteiras, mulher.
Quem compraria um livro feito por uma dona de casa?”.
"Havia a
convicção de que Eurídice só podia ser levada a sério quando dizia que o jantar
estava na mesa. (...) Seus projetos estavam confinados ao universo daquela
casa."
Apesar
de toda a resistência à realização de seus projetos, Eurídice aproveita o tempo
em que o marido trabalha e os filhos estão na escola, para correr atrás de alguma
coisa que lhe permita dar “um significado maior” para sua vida, além daquele de
mãe e dona de casa, tanto que uma vez mais, se joga em outro desafio: aprender
a costurar.
Após comprar
uma máquina de costura, primeiro costura para os filhos e o marido, depois
costura roupas cada vez mais elaboradas para si e, posteriormente, começa a
costurar para a vizinhança, transformando sua casa num ateliê, até o ponto em
que Eurídice precisa contratar ajudantes para dar conta de todo o trabalho,
assim Eurídice passa a ganhar bastante dinheiro.
Mas,
Antenor ao descobrir sente-se humilhado, afinal, ele agora é gerente do Banco
do Brasil, porque sua mulher teria que costurar? Antenor proíbe Eurídice de
continuar costurando e ganhando dinheiro, afinal, ele é o provedor da família.
Assim, Eurídice, mais uma vez, tem suas vontades reprimidas.
"Com um olho ela vestia Afonso e Cecília para a
escola, e com o outro se perguntava: será que a vida é só isso? com um olho ela
ajudava as crianças com o dever, e com o outro se perguntava: e quando eles não
precisarem mais de mim? com um olho contava histórias, e com o outro se
perguntava: existe vida além dos uniformes escolares, da memorização da tabuada
e de todas as histórias da carochinha?"
É
possível até dizer que a cada projeto sabotado, Eurídice parece ganhar mais
força para romper os limites que lhe foram impostos pela sociedade, família,
marido.... Assim, uma vez mais, senta-se no sofá (seu lugar predileto para
reflexão), olha as unhas e pensa nas possibilidades e descobre a estante de
livros na sala, e aí decide estudar as enciclopédias para ensinar seus filhos
sobre as coisas do mundo.
É
através dessas leituras, que Eurídice descobre
Leon Tolstói (Anna Karenina), Gustave Flaubert (Madame Bovary) e Shakespeare, e
se vê motivada a reagir após encontrar nos livros e nas histórias a
possibilidade de descobrir novos universos sem sequer sair do lugar.
Por
fim, após comprar uma máquina de escrever, Eurídice encontra prazer em escrever
e é através da escrita que ela uma vez mais se reinventa na tentativa de romper
as barreiras da opressão e da invisibilidade, passando os dias finais de sua
vida debruçada nas páginas de livros e páginas escritas, descobrindo assim um
novo sentido para sua vida e, finalmente, agora ela podia dar vasão à sua ânsia
de ser e de fazer.
Vale citar que Marta procura retratar no romance as inúmeras violências
simbólicas que as mulheres sofrem cotidianamente desde a infância; no entanto, a
autora deixa claro para os leitores que, na história que se conta, há um
recorte de gênero, raça e classe: trata-se da vida de uma mulher de classe
média, branca e heterossexual, uma perspectiva privilegiada dentro e fora da
narrativa.
Curiosidades sobre a obra:
O livro foi publicado no Reino Unido pela Oneworld
Publications com o título de “The Invisible Life of Euridice Gusmao” e teve os
direitos vendidos para várias outras editoras estrangeira, tendo sido traduzido
para dez idiomas.
Somente após seu sucesso internacional é que a obra
foi publicada no Brasil em 2016 pela Companhia de Letras, que tinha
anteriormente rejeitado o livro.
Porém, a maior parte da curiosidade em relação ao
livro, no Brasil, surgiu quando seus direitos também foram vendidos para uma
adaptação para o cinema através do cineasta Karim Aïnouz e o produtor Rodrigo
Teixeira que produziram o filme A Vida
Invisível, o qual ganhou Prêmio Festival de Cannes Prêmio Un Certain Regard
— A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. O filme também ganhou o Prêmio CineCoPro
no Festival de Cinema de Munique, além de ter sido indicado para representar o Brasil
como Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia do Oscar de 2020.
Um pouco sobre Martha
Batalha
Nasceu em Recife em 1973 e cresceu no Rio de
Janeiro. Trabalhou como repórter e criou a editora Desiderata. Mudou-se em 2008
para Nova York, onde fez mestrado em Publishing na NYU e atuou no mercado
editorial. Seu romance de estreia, A
vida invisível de Eurídice Gusmão, foi finalista do prêmio São Paulo de
Literatura e semifinalista do Oceanos, além de ter os direitos vendidos para
mais de onze países e para o cinema. Martha mora em Santa Mônica, na
Califórnia, com seu marido e dois filhos.
Características
da obra:
Nome: A vida invisível de Eurídice Gusmão
Autora: Martha Batalha
Editora : Companhia das Letras
Idioma: Português
Ano: 2016
Preço: Ebook kindle — R$ 26,82
Capa dura — A partir de R$ 38,32
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