Iracema —José de Alencar

Iracema, escrito por José de Alencar, faz parte da primeira fase do romantismo brasileiro, que ficou conhecido como Indianismo, cujo enredo se passa no século XVII (entre 1603 e 1611), remontando aos anos da chegada dos portugueses ao continente sul-americano.

Teve sua primeira publicação em 1865 e, até hoje, figura entre as principais obras literárias brasileiras.  Faz parte da trilogia indianista do autor, juntamente com o Guarani (1857) e Ubirajara (1874).

Escrito nos anos finais da primeira geração do romantismo brasileiro, Iracema é obra inspirada por forte nacionalismo, que caracteriza essas produções românticas. À época, o Brasil era uma nação recém-independente de Portugal, fato que direcionava artistas de diversos gêneros a pensarem e construírem uma ideia de identidade cultural, de origem nacional, do que significa ser brasileiro.

Entretanto, trata-se de uma idealização da figura do índio, bem como do traumático processo colonial. A invasão portuguesa não despertou grandes paixões dos povos originários pelos homens europeus, como retrata a narrativa. Pelo contrário: os portugueses trouxeram consigo doenças, guerras territoriais, escravidão e estupro de indígenas, além do grande genocídio das populações que habitavam o território brasileiro.

O romance traz a representação da união entre portugueses e os povos originários de forma idealizada, além de aliar ficção e fatos históricos. É um livro que pertence ao  gênero romance histórico, por contar uma história de origem do Ceará, e poema em prosa , por causa da maneira como é escrito pelo autor. Narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente e onipresente, que conta tudo de modo muito descritivo e poético.

Iracema, a protagonista, uma mulher indígena, representante do povo nativo ameríndio, se  apaixona por Martim, primeiro colonizador português do Ceará do século XVI. É por meio do enlace amoroso entre os dois que José de Alencar constrói uma narrativa que remonta à gênese da pátria brasileira, já que o fruto do amor entre uma colonizada e um colonizador teria gerado Moacir — considerado o primeiro cearense  a gênese da nacionalidade brasileira —  cujo nome significa “filho do sofrimento”.

Iracema representa a indígena submissa à cultura europeia, e seu nome é um anagrama de América, ou seja, é escrito com as mesmas letras do continente que,  em tupi significa “saída de mel— saída de abelhas”. Martim, por sua vez, representa o guerreiro colonizador e conquistador. Seu nome é associado a Marte, o deus greco-romano da guerra. A união entre os dois representa a lenda da criação do Ceará, pois Iracema foi enterrada à sombra de um coqueiro em que a jandaia, sua ave de estimação, cantava em lamento à sua morte. Ceará significa “canto da jandaia”.

A história tem início quando Martim Soares Moreno, um aventureiro português, valente, responsável por defender o território brasileiro de outros invasores europeus, perde-se na mata, em localidade que hoje corresponde ao litoral do Ceará. Iracema, índia tabajara que então repousava entre as árvores, assusta-se com a chegada do estranho, e dispara uma flecha contra Martim.

Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.

Ao ver que o rapaz não reagiu ao ataque e que não tinha más intenções, Iracema o socorre e decide levá-lo para sua tribo, a dos tabajaras.

Chegando lá, Martim é recebido pelo pajé Araquém (pai de Iracema), com quem firma um acordo de defesa da tribo. Em troca de proteção, o pajé oferece ao português uma boa hospedagem e muitas mulheres belas. Porém, Martim não toca em nenhuma mulher, pois só tem olhos para Iracema, a virgem dos lábios de mel.

Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho pajé apagou o cachimbo e falou:

— Vieste?

— Vim, respondeu o desconhecido.

— Bem vieste. O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém. Os tabajaras têm mil guerreiros para defendê-lo, e mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te obedecerão.

Iracema é uma índia,  filha do pajé Araquém, nascida e criada nos campos dos Tabajaras. Fisicamente Iracema é descrita como "a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira". A jovem simboliza os nativos que viviam no Brasil antes da chegada do colonizador. 

Apesar de Martim ter sido recebido com grande hospitalidade, sua chegada não agradou a todos, principalmente Irapuã, guerreiro tabajara apaixonado por Iracema.

Durante sua estadia na aldeia, Iracema e Martim aproximam-se e floresce, entre os dois, forte atração. Contudo, Iracema tem um papel importante na tribo: é uma virgem consagrada a Tupã, guardadora do segredo da jurema (uma fruta com a qual se faziam rituais muito sagrados), um licor sagrado, que levava ao êxtase os índios tabajaras. e que por isso ela deveria manter sua virgindade.

Entre festejos e batalhas com outras tribos — entre elas, a dos Pitiguaras, aliados de Martim — Iracema e o estrangeiro português envolvem-se amorosamente, e a índia quebra o voto de castidade, o que significa uma condenação à morte. Martim, por sua vez, também é perseguido: Irapuã e seus homens querem beber seu sangue. A aliança com os Pitiguaras torna-o um inimigo ainda mais indesejado.

Apaixonados, Iracema e Martim precisam fugir da aldeia tabajara antes que a tribo perceba que a virgem rompeu o voto de castidade. Juntam-se ao guerreiro Poti, índio pitiguara, a quem Martim tratava como irmão. Assim, Poti pode também simbolizar a subserviência do indígena ao europeu, assim como Iracema. Quando os tabajaras percebem a fuga, partem em perseguição aos amantes liderada por Irapuã e Caiubi, o irmão de Iracema.

Acabam por encontrar a tribo Pitiguara, e uma sangrenta batalha é travada. Caiubi e Irapuã agridem violentamente Martin, e Iracema avança com ferocidade contra os dois, ferindo-os gravemente. Prevendo a derrota, a tribo tabajara bate em retirada.

O casal, então, refugia-se em uma praia deserta, onde Martim constrói uma cabana. Iracema passa muito tempo sozinha enquanto o amado fiscaliza as costas, em expedições a mando do governo português. Martim é constantemente tomado pela melancolia e nostalgia de sua terra natal, o que entristece Iracema, que passa a pensar que sua morte seria, para ele, uma libertação.

Tempo depois, Iracema descobre-se grávida, mas Martim precisa partir para defender, junto a Poti, a tribo pitiguara, que está sob ataque. Iracema acaba tendo o filho sozinha, e batiza a criança de Moacir, o nascido de seu sofrimento. Ferida pelo parto e pela tristeza profunda, o leite de Iracema seca; Martim chega a tempo de Iracema entregar-lhe a criança e falecer logo em seguida.

A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza e amor. — Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.

Nota-se que na obra-prima de José de Alencar , há a idealização do povo indígena e a exaltação da terra, onde  encontramos uma protagonista altamente idealizada — Iracema    descrita como corajosa, honesta, generosa, doadora, encantadora, bela, casta e pura, como uma representante romântica do seu povo. Símbolo do amor e da maternidade, Iracema não vê maldade ao seu redor.

Entretanto, não é apenas a personagem principal feminina que é romantizada, o próprio cenário é idealizado. O Estado que abriga a história, o Ceará, aparece como um espaço paradisíaco, um cenário idílico que serve como pano de fundo para uma paixão proibida e avassaladora.

Por outro lado, o pequeno Moacir é o simbolicamente não só o primeiro cearense, como também o primeiro brasileiro. Ele é igualmente tido como o primeiro mestiço, o primeiro indígena e, ao mesmo tempo, não indígena, fruto da relação de uma índia com um branco. Moacir representa ainda o  símbolo do encontro e do desencontro. Ele é resultado de uma paixão avassaladora, mas também é a representação do destino de um amor inalcançável.

É importante sublinhar que, na narrativa, para Moacir viver a mãe precisa morrer. Iracema perde a vida logo depois de dar à luz e o pequeno bebê é levado para o velho continente onde será educado. 

Em termos alegóricos, pode-se afirmar que é a partir do sacrifício (voluntário) do índio que nasce o primeiro brasileiro. Dessa forma, a obra destaca a resignação e submissão dos indígenas aos colonizadores.

Da virgem dos lábios de mel, disse Machado de Assis:  "Não resiste, nem indaga: desde que o olhos de Martim se trocaram com os seus, a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão".

 

Personagens:

Iracema:

Índia da tribo dos tabajaras, filha de Araquém, velho pajé; era uma espécie de vestal (no sentido de ter a sua virgindade consagrada à divindade) por guardar o segredo de jurema (bebida mágica utilizada nos rituais religiosos). A palavra "Iracema" é um anagrama de "América". Segundo o autor José de Alencar, "Iracema" seria uma palavra com origem na língua tupi que significaria "A virgem dos lábios de mel". Entretanto, o tupinólogo Eduardo de Almeida Navarro contesta tal etimologia, sustentando que "Iracema" provém do nheengatu e significa "saída de abelhas, enxame".

Martim:

Guerreiro branco, amigo dos Potiguaras, habitantes do litoral, adversários dos Tabajaras; os Potiguaras lhe deram o nome de Coatiabo.

Moacir:

Filho de Iracema e Martim, o primeiro brasileiro miscigenado. É o primeiro cearense do estado, pois é o primeiro filho de uma indígena e um branco. O nome provém do termo tupi moasy, que significa "arrependimento", "inveja". Entretanto, segundo o tupinólogo Eduardo de Almeida Navarro, a etimologia dada por Alencar ao nome não é correta.

Araquém:

Pai de Iracema e Caubi, é o pajé dos Tabajaras. Fecha um acordo com Martim, hospedando-o em sua tribo e protegendo-o de diversas ameaças.

Caubi:

Indio Tabajar, irmão de Iracema, ajuda a irmã em diversos momentos. Vai visitá-la para conhecer o filho do casal e percebe a tristeza de Iracema com a ausência de Martim. 

Irapuã:

Rival de Martim, é um guerreiro Tabajara que está apaixonado por Iracema. Tenta prejudicar e ferir o português para eliminá-lo e poder ficar com a moça.

Poti:

Herói dos Potiguaras, É o melhor amigo de Martim, ao qual considerava irmão. Ajuda-o com os assuntos de guerra, abandonando sua tribo para ir morar com o casal e ajudá-los.

Jacaúna:

Chefe dos guerreiros potiguaras, irmão de Poti.

Batuirité:

O avô de Poti. Chama Martim de "Gavião Branco". Antes de morrer, profetiza a destruição de seu povo pelos brancos.

Japi:

Cão de Martim. "Japi" é o nome de um pássaro (Cacicus cela)

 

Curiosidades:

Iracema foi publicado em 1865 e inicialmente possuía o subtítulo Lenda do Ceará. Literariamente importante para todo o país, a verdade é que o romance foi ainda mais marcante para a história do Estado cearense já que o nome da protagonista serviu de inspiração para uma série de monumentos da região além de ser o nome da sede do governo e de um trecho da orla de Fortaleza.

A criação literária partiu de uma tentativa do autor de criar uma ficção. Intelectual preocupado com a política do país, José de Alencar encontrou na composição do romance uma maneira de contribuir para a criação do Mito idealizado, que exclui a dominação, extermínio e escravização dos povos originários. O Indianismo foi uma das fases do Romantismo.

Durante esse período procurou-se voltar ao passado, à gênese do povo brasileiro, evocando o nacionalismo e exaltando as belezas naturais do nosso país. O movimento romântico voltava os olhares para o indígena como uma figura idealizada. Nesse contexto o indígena se transformou em uma espécie de herói nacional.

O romance de José de Alencar foi levado ao cinema em 1979 por Carlos Coimbra com o título Iracema, a virgem dos lábios de mel, interpretada por Helena Ramos, vista como símbolo sexual da década de 70.

Outras produções cinematográficas foram feitas baseadas na obra. Um filme que tomou emprestado o título do romance para tratar da questão indígena é Iracema - Uma transa Amazônica, de 1974, que aborda a prostituição de garotas indígenas, trabalho escravo e devastação da floresta amazônica.

 

Sobre José de Alencar

José Martiniano de Alencar, dramaturgo, romancista, jornalista, crítico e também político, nasceu  em Messejana (CE), em 1º de maio de 1829. Filho de um senador do império, mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro, tendo vivido também em São Paulo, onde cursou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e em Pernambuco, onde concluiu o curso na Faculdade de Direito de Olinda.

Alencar foi redator no jornal Diário do Rio, ofício que abandonou para dedicar-se à política: foram quatro legislaturas seguidas atuando como deputado do Ceará pelo Partido Conservador. Foi também um dos maiores representantes do romantismo brasileiro, sendo parte da 1ª geração de autores românticos, ligada ao indianismo e ao nacionalismo, preocupado, principalmente, com a consolidação de uma cultura autenticamente brasileira.

Escreveu romances indianistas, urbanos, históricos e regionalistas. Também produziu obras para o teatro e exaltados textos políticos, nos quais criticava a figura do imperador e versava sobre política externa, diplomacia, e uma controversa apologia do trabalho escravo. É autor de diversos livros que trazem diferentes perfis femininos como protagonistas.

Iracema foi adaptado para o cinema em 1979, sob o título de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Dirigido por Carlos Coimbra, também autor do roteiro, o qual procurou mostrar a ordem cronológica do romance, bem como reproduzir as paisagens paradisíacas do século XVI descritas por Alencar. 

Entretanto, de acordo com a crítica, a produção cinematográfica enfraqueceu a figura de Iracema , tornando-a submissa, passiva, colonizada, e a filmagem foi orientada para erotização do corpo nu de Iracema, nos moldes do cinema da pornochanchada, vigente à época da produção.

 

Iracema

Autor: José de Alencar

Traduções da obra:

Espanhol Iracema: leyenda de Ceará (Madrid - 1984), Iracema (Buenos Aires – 1944);

Inglês — Iraçéma, the honey-lips: a legend of Brazil (London - 1886);  Iracema: a novel (Oxford – 2000);

Latim — Iracema (Belém: oficial – 1950);

Esperanto — Iracema: legendo pri Cearao  (Rio-de-Ĵanejro: Kultura Koop. de Esperantistoj, 1974);

Russo — Ирасема: повесть (Irasema: povest') Moskva(Izd. Chudozestvennaja Literatura, 1989).

 

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