“Estas memórias ou recordações são
intermitentes e por vezes fugidias na memória, porque a vida é precisamente
assim. É a intermitência do sono que nos permite aguentar os dias de trabalho.
Muitas das minhas recordações desvaneceram-se ao evocá-las, ficaram em pó como
um vidro irremediavelmente ferido.
As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, mas fotografou muito mais, recreando-nos com a perfeição dos pormenores. Este entrega-nos uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e pela sombra da sua época.
Não vivi, talvez, em mim mesmo; vivi, talvez, a vida dos outros. De quanto nestas páginas deixei escrito se desprenderão sempre — como nos arvoredos de Outono, como no tempo das vindimas — as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado.
A minha vida é uma vida feita de todas as vidas – as vidas do poeta.”
As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, mas fotografou muito mais, recreando-nos com a perfeição dos pormenores. Este entrega-nos uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e pela sombra da sua época.
Não vivi, talvez, em mim mesmo; vivi, talvez, a vida dos outros. De quanto nestas páginas deixei escrito se desprenderão sempre — como nos arvoredos de Outono, como no tempo das vindimas — as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado.
A minha vida é uma vida feita de todas as vidas – as vidas do poeta.”
Confesso
que Vivi é um livro "quase" autobiográfico, escrito ao longo de vários anos
pelo autor chileno Pablo Neruda e publicado postumamente no ano de 1974.
Em Portugal, foi publicado pela primeira vez, em abril de 1975, pelas Publicações Europa-América e, no Brasil, foi publicado como "Confesso que Vivi —
Memórias", pela Difel — Difusão Editorial em 1978.
Segundo
pesquisa do Instituto do Livro Espanhol, o livro, na versão original em
espanhol, figurou em segundo lugar na
lista dos dez mais vendidos na Espanha no ano de 1975.
Ao
longo de 340 páginas, o laureado com o Prêmio Nobel da Literatura de 1971
descreve o trajeto da sua vida, recorrendo a uma prosa salpicada de imagens
poéticas que prende facilmente a atenção do leitor.
A
obra divide-se em diversos capítulos correspondentes a outras tantas fases da
vida do poeta:
• O
jovem provinciano - sobre a infância e a adoslecência passadas na província;
• Perdido
na cidade - sobre os tempos universitários, já em Santiago;
• Os
caminhos do mundo - sobre o início da carreira diplomática e a primeira viagem
ao Oriente;
• A
solidão luminosa - sobre as suas impressões da Índia, do Ceilão e do Sudeste
Asiático;
• A
Espanha no coração - sobre a estadia em Espanha, como cônsul do Chile em
Barcelona, e o seu relacionamento com poetas como Lorca e Alberti;
•
Saí a procurar caídos - sobre a Guerra Civil Espanhola e a ajuda de Neruda para
que alguns republicanos espanhóis pudessem fugir para o exílio;
• México
florido e espinhoso - sobre as suas memórias do México e as suas impressões da
Segunda Guerra Mundial;
• A
pátria em trevas - sobre o seu regresso ao Chile e à passagem pelo Peru;
• Princípio
e fim de um desterro - sobre o seu desterro que o levou à União Soviética e à
China;
• Navegação
com regresso - sobre a sua prisão em Buenos Aires e nova viagem ao Oriente no
final da década de 1950;
• A
poesia é um ofício - onde reflecte sobre a sua obra e algumas das
personalidades que o marcaram;
• Pátria
doce e pura - sobre o seu regresso à pátria, a subida de Allende ao poder e o
Golpe de Estado de 1973.
As
derradeiras páginas deste último capítulo foram escritas no curto intervalo de
tempo, de apenas doze dias, entre o golpe de Estado de 11 de setembro e a morte
de Neruda em 23 do mesmo mês. Nessas linhas, o poeta fala de forma amargurada
das esperanças derrubadas pela violência dos militares e das memórias do seu
amigo Salvador Allende.
Neruda
nunca esqueceu suas raízes, sempre esteve ligado aos acontecimentos políticos e
sociais de sua pátria. Aliás, em sua poesia podemos observar sempre a alusão às
raízes, desde as tenras da infância nos bosques chilenos aos alicerces de
convicções que nosso poeta construiu e floresceu em seus poemas. As estações
também são usadas constantemente como referências nos textos do poeta,
principalmente, a primavera.
Pablo
Neruda, para esconder a poesia de seu pai, nasce Neftali Ricardo Reyes Basoalto, em
Parral, ao sul do Chile. Seus primeiros passos maiores se darão em Temuco, onde
faz os seus estudos básicos, completados depois em Santiago. De Santiago ganha
o mundo, levado em primeiro lugar pela sua vida de diplomata, em Rangoon,
Colombo, Batávia, Cingapura e depois
levado aos centros mais cosmopolitas, pela leveza e grandiosidade de sua poesia.
Divide anos de longínqua solidão com a sua iniciação à poesia.
As primeiras e grandes
impressões do mundo: a morte da mãe, esgotada pela tuberculose um mês após dar
à luz; o pai operário e maquinista – José Del Carmem; a madrasta que o autor
intitula o anjo tutelar de minha infância... A chuva é a presença mais
constante na infância do jovem provinciano no cenário do bosque chileno.
A
sensibilidade do menino é demonstrada na grandeza do relato da “casa das três viúvas”, escrito quarenta e cinco
anos após, registrando o jantar maravilhoso servido pelas três senhoras
francesas e a conversa sobre a poesia de Baudelaire.
Depois dos anos de Liceu, o poeta vai para faculdade em Santiago do Chile e
incorre em novas descobertas e desconhecimentos. Assume a timidez inimaginável
para o auto dos Cantos Gerais.
A nomeação de Pablo Neruda para ser cônsul do Chile em Rangum, na Birmânia, inicia uma nova fase na vida do poeta que
conhece um novo mundo nos lugares remotos que vive e passa a ter uma percepção
mais ampla do homem.
Uma passagem marcante de sua vida é o encontro com Federico Garcia Lorca, já
trabalhando em Buenos Aires. O poeta lhe abre as portas para a Espanha, onde
irá trabalhar, em Barcelona. O encontro com o poeta se deu em 1933 e a sua ida
para a Espanha, ocorrerá já no ano seguinte.
Possivelmente a Espanha
deixou em Neruda as suas marcas mais profundas. Aí viveu os horrores da mais
sangrenta Guerra Civil, a Guerra Civil espanhola. Um milhão de mortos e um
milhão de exilados.
Sua relação com Federico
Garcia Lorca e com a Espanha estão sacramentadas no caderno “Espanha
no coração”.
O poeta vive a guerra civil
espanhola e tais vivências influenciam de forma marcante sua literatura e o seu
ingresso no Partido Comunista. Neruda sente necessidade de escrever para os
seus semelhantes, no caminho do humanismo enraizado nas aspirações do ser
humano. Assim começou a escrever os “Cantos Gerais”.
Neruda conta como esta
guerra chegou a ele. Tinha marcado com Lorca, assistir uma luta de catch-as
catch-can, convencido pela insistência de um convite de um empresário chileno
do ramo. Garcia Lorca, no entanto, faltou ao encontro. Neruda nos dá os
detalhes: "Federico faltou ao
encontro marcado. Já estava a caminho da morte. Nunca mais nos vimos. Seu
encontro era com outros estranguladores. E, desse modo, a guerra da Espanha,
que mudou minha poesia, começou para mim com o desaparecimento de um
poeta". Lorca havia sido assassinado em Granada.
Neruda definia Garcia Lorca
como um multiplicador de beleza: "No
palco e no silêncio, na multidão e na intimidade, era um multiplicador de
beleza". O desaparecimento do poeta se deu por assassinato, pois
ninguém poderia imaginar que a Espanha mataria um dia, "o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a um menino pela
sua alegria maravilhosa" de seus poetas.
Sentiu profundamente a sua
morte e qualificou este crime como "o
acontecimento mais doloroso de uma longa luta". Diante do laboratório
de testes do nazismo que foi a ação de Franco na Guerra Civil, o poeta escreveu
o livro España en el Corazón.
Mais adiante descreve a escolha de seu caminho como militante político: "Embora eu tenha me tornado militante
muito mais tarde no Chile, quando ingressei oficialmente no partido, creio ter
me definido como um comunista diante de mim mesmo durante a guerra da Espanha.
Muitas coisas contribuíram para a minha profunda convicção".
Neruda nunca teve dúvidas
quanto a esta sua escolha. Passou por inúmeras tormentas, como as denúncias
contra Stalin, no XX Congresso do Partido, mas isso jamais abalou a convicção
com que fizera a sua escolha. Considerava que fora devolvida ao Partido a sua
capacidade de autocrítica e de análise.
Outra das mais emocionantes
passagens do livro é a sua perseguição, na fuga que empreende do Chile, vítima
de perseguição do governo anti-comunista ali instalado. A travessia da
Cordilheira dos Andes não é coisa para amadores. Mas escapa ileso, chegando ao
lado argentino, de onde será levado a Paris.
É deste tempo de adversidades
que examina a natureza dos governos da América Latina e mais violentamente
denuncia a ação dos governos imperialistas, do chamado "mundo livre", que compõe o seu Canto General,
possivelmente o seu livro mais conhecido e famoso.
O último capítulo é sobre a
vida e a morte de Salvador Allende, primeiro marxista eleito presidente da
República na América Latina em 1970, morto durante o golpe que o depôs em 11 de
setembro de 1973.
Neruda escreveu-o poucos
dias após aos fatos que culminaram na morte do governante e morreu no mesmo
mês, em 23 de setembro de 1973. Certamente de amargura por não poder ver os seus ideais de justiça
e liberdade se consolidarem no poder. Os autoproclamadores do "mundo
livre" tinham aplicado o golpe.
As suspeitas que pairam é de
que houve envenenamento como causa de sua morte, confiram a noticia
publicada em 04/03/2013:
SANTIAGO, 04 Mar 2013 (AFP) - Os restos mortais do poeta e prêmio
Nobel chileno Pablo Neruda, morto em 1973 pelo que se acredita terem sido
complicações de um câncer, serão exumados nos primeiros dias de abril, para
esclarecer uma denuncia de envenenamento, informou nesta segunda-feira o juiz
encarregado do caso.
Pablo Neruda está sepultado atualmente junto com sua esposa, Matilde
Urrutia, em sua casa museu de Isla Negra, cidade do litoral do Chile situada a
120 quilômetros de Santiago.
Ao final do livro publica
uma espécie de poema, intitulado Os Comunistas, que encerra como uma
espécie de proclamação de fé e de conclamação em torno de ideais de mudança: "... Enquanto isso sobem os homens pelo
Sistema Solar... Deixam pegadas de sapatos na Lua... Tudo luta por mudanças,
menos os velhos sistemas... A vida dos velhos sistemas nasceu de imensas teias
de aranha medievais... teias de aranha mais duras do que os ferros das
máquinas... No entanto, há gente que acredita numa mudança, que tem posto em
prática a mudança, que tem feito triunfar a mudança, que tem feito florescer a
mudança... Caramba!... A primavera é inexorável"!
Como o próprio poeta
afirmou em sua autobiografia: “...a história é escrita pelos vencedores ou
pelos que desfrutaram da vitória.” Pablo Neruda é uma vitorioso, venceu
os preconceitos e as tantas perseguições políticas e criou uma obra literária
lida no mundo inteiro - uma leitura obrigatória para toda a humanidade.
Confesso que Vivi — Memórias
Autor: Pablo Neruda Tradução: Arsénio Mota
Publicação: Europa-América
Coleção: Grandes Clássicos do Século XX
Edição/reimpressão: julho de 2009
Preço: De R$ 41,90 até R$ 55,00
Pesquisa:
http://acervo.folha.com.br/fsp/1976/01/28/21/4278148http://pt.wikipedia.org/wiki/Confesso_que_Vivi
http://m.g1.globo.com/mundo/noticia/2013/03/corpo-de-neruda-sera-exumado-em-abril-para-esclarecer-morte.html