Outros jeitos de usar a boca — Rupi Kaur

“... Mas o que eu não sabia é que seu amor por mim tinha tanto a ver com quem eu era. Era um reflexo de tudo o que eu dei pra você, voltando pra mim. Como não percebi isso. Como pude ficar aqui imersa na ideia de que mais ninguém me amaria daquele jeito. Se fui eu que te ensinei. Se fui eu que mostrei como preencher, do jeito que precisava ser preenchida. Como fui cruel comigo...”

Outros jeitos de usar a boca é a tradução publicada pela editora Planeta (Milk and Honey, no original), de Rupi Kaur, escritora indiana, que vive no Canadá e se tornou um dos maiores fenômenos de poesia na última década.

Seus versos falam sobre a realidade do que é ser mulher nos dia de hoje, abordando temas como aceitação, amor, trauma, abuso, violência, perda, dor e feminismo de uma forma direta e honesta, os quais têm inspirado mulheres mundo afora. 

Rupi Kaur costumava compartilhar suas poesias nas redes sociais e ao perceber que muitas pessoas se sensibilizavam com o seu trabalho —  1,2 milhão de seguidores no Instagram, 124 mil no Twitter e 321 mil no Facebook —  aproveitou e lançou o livro Milk and Honey, no original,  de maneira independente na Amazon em 2014, publicando em outubro do ano seguinte uma segunda edição.

O livro tornou-se o maior fenômeno do gênero nos últimos anos nos Estados Unidos ao ultrapassar um milhão de cópias vendidas em um ano e ficou mais de 40 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times, o que é inusitado já que este tipo de gênero dificilmente lidera ranking de vendas.

A obra foi lançada no Brasil em maio de 2017 com um título bem mais sugestivo e provocante: outros jeitos de usar a boca, através da Editora Planeta, com tradução de Ana Guadalupe. O título, ao primeiro olhar,  abre um leque de possibilidades e  desperta o interesse do leitor  em comprar/ler. Na obra, a boca remete primeiro ao instrumento de expressão e, posteriormente, à proposta do amor que se discute na obra.

Com uma linguagem direta e sem formalismos, algumas das poesias não ultrapassam cinco linhas, outros ocupam duas páginas. A obra é toda escrita com letras minúsculas, bem como todas as poesias do livro. Outra característica interessante em sua escrita é que em seus poemas a pontuação é quase inexistente — não existe vírgulas, apenas pontos.    

No decorrer da leitura o leitor vai comparando vivências pessoais com as experiências da autora e percebe que a obra é um grito à dor, à submissão, ao abuso, à perda, à procura e descoberta do amor próprio, da cura das feridas emocionais e físicas e da superação. Acompanhadas de ilustrações que refletem a universalidade dos sentimentos e que a levam a descobrir que existem outros jeitos de ser amada e respeitada por si mesma e pelo meio em que vive, já que ela é a pessoa mais importante de sua própria vida.

Outros jeitos de usar a boca é dividido entre quatro partes: a dor, o amor, a ruptura e a cura.  Na primeira parte do livro, a dor,  é retratado os momentos mais sórdidos e dolorosos da mulher. O leitor consegue absorver o sentimento com que a autora fala sobre traumas, relacionamentos abusivos, violência doméstica, das relações complicadas entre pais e filhas, da falta de autoconfiança e autoestima, entre outros. Trata-se de um capítulo que faz críticas ao comportamento de pais e homens em relação às meninas e mulheres.

Quando chega a parte do amor Kaur escreve de um jeito doce, inocente e encantador. O amor representa uma mudança brusca e surpreendente em meio às suas batalhas internas que encontra um ao outro e lhe permite baixar a guarda. São poemas mais leves e delicados, apaixonados e sensuais, onde a inocência está presente no  sentimento de amar alguém pela primeira vez e se ver perdida nos encantos da pessoa que parece ter vindo salvá-la.

O leitor pode sentir, em cada palavra, uma atmosfera diferente que o leva a interagir com as vivências colocadas bem diante do seu nariz, afinal, quem nunca se deparou com um amor explosivo, sublime, que abre espaço para todas as fragilidades?
E é aí assim que Kaur conduz o leitor a aprender que não há como se redimir por amor ao outro – apenas por si.

A ruptura —  a terceira etapa na jornada que vem depois do amor —  é um compilado de sentimentos depois do término de um relacionamento, indo do sofrimento e saudade até o alívio e a alegria. É a tal de sofrência no melhor estilo.

Nessa fase, o relacionamento nutrido em amor desmorona, tornando doloroso o processo de lidar com a decisão de partir e romper com o que foi construído, pois não encontra plenitude em si mesma.

É a quebra da idealização do Amor. O amor romântico é contraposto ao respeitar-se e amar-se. A autora após sofrer com relações abusivas e finalmente encontrar uma relação saudável, fala sobre o fim de um relacionamento, como a frieza, o afastamento, as brigas, o esforço em manter algo que já não faz mais sentido.

E, por fim, vem a última parte do livro, a cura, onde a autora aborda seu renascimento. É sobre se amar, se aceitar, se entender com a capacidade para amar e ser amada, tal como é, antes de qualquer coisa. É o momento de entender que não importa o quanto tudo parece errado em sua vida, o que importa é que sempre haverá recomeço, renascimento e uma segunda chance para todos. É só querer!

Outros jeitos de usar a boca  é, ao mesmo tempo, sensível e cruel, duro e amável, esclarecedor e cheio de representatividade, enfim, a jornada de vida de Rupi Kaur.   Trata-se de uma leitura até rápida, por sua densidade, que vai desde a infância, o primeiro contato físico, até o leve rubor provocado pelo erotismo ora ocultado, ora explícito, em certos versos.

A autora, através de seu ponto de vista, aborda temas femininos que dão força e visibilidade ao movimento feminista, fazendo com que outros jeitos de usar a boca seja não somente uma coletânea de poemas, mas uma autobiografia em versos, onde fala sobre medos, preconceitos, abusos, mágoas, raivas, amores, e de dor, mas também contempla o amor, a cura e a libertação através da poesia.

Em uma época em que todo mundo está falando de relacionamentos abusivos, Rupi Kaur não tem pudor em mostrar as suas mazelas e mostrar que conseguiu sobreviver, viver e seguir em frente. Outros jeitos de usar a boca é um livro dedicado ao universo feminino, entretanto,  a leitura é fortemente recomendada para toda e qualquer pessoa, por serem temas que convidam o leitor a pensar e repensar no que acredita merecer, na ideia que tem dele mesmo, ou baseado no que os outros falam e acreditam ser para ele o correto. 

Pode-se dizer que, é praticamente impossível passar os olhos pela obra e não se envolver nessa montanha russa de sensações e emoções criadas por Kaur que , muitas vezes, apela às palavras como remédio. Seus desejos e mazelas que, em grande parte, são as mesmas para todas as mulheres do mundo, ainda que cada uma delas tenha um propósito diferente, encare uma dor diferente ou cure uma mágoa diferente, talvez, sejam essa características tão femininas e tão intuitivas que definem a obra de Rupi Kaur, como uma leitura recomendável para ler e reler dia sim, dia também.

“aqui está a jornada de
sobrevivência pela poesia
aqui está o sangue suor lágrimas
de vinte e um anos
aqui está o meu coração
em suas mãos
aqui está
o amor
a dor
a ruptura
a cura”


Título: outros jeitos de usar a boca
Título Original: milk and honey
Autora: kupi kaur
Tradução: Ana Guadalupe
Editora: Planeta
Edição:     1
Ano:         2017
Preço: De R$ 17,94  a  R$ 29,90

Um pouco sobre a autora
Rupi Kaur nasceu em Punjab, na Índia, emigrou para Toronto, Canadá ainda criança, cresceu em uma comunidade de imigrantes no subúrbio de Toronto e é adepta de uma religião cercada de muito preconceito, o sikhismo. Suas vivências são bastante específicas, rodeadas de tabus e regras sobre ser mulher.

Rupi Kaur é uma poeta feminista contemporânea, escritora, artista plástica e performer que vive em Toronto e é popularmente conhecida online com seus poemas no Instagram. Em 2015, Kaur publicou um livro de poesia e prosa intitulado “milk and honey” e que aborda temas de violência, abuso, amor, perda e feminilidade.

Kaur além de escrever, faz performances, atua, fotografa e ilustra, tanto que todas as ilustrações minimalistas de sua obra Outros Jeitos de Usar a Boca (milk and honey) que foram feitas por ela mesma.

Ela conta que herdou o apreço por desenho da mãe, que tem a atividade como hobby até hoje. Quando a família de Kaur chegou ao Canadá, ela não conseguia falar em inglês com outras crianças, isso a fez passar muito tempo sozinha e, consequentemente, a desenhar.

“Como pertencia a uma família de imigrantes, eu não tinha permissão para fazer esportes ou participar de acampamento, então o único que eu podia fazer era artes. Sempre pintei e li, como se a minha vida dependesse disso”, disse em entrevista ao site Espanhol Woman.

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